quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O Anjo do Mal

Pick up on south street 1953. Usa (83’). Prod. Fox (Jules Schermer). Real. Samuel Fuller. Roteiro: Samuel fuller, a partir de uma história de Dwight Taylor. Foto: Joe Macdonald. Música: Leigh Harline. Int: Richard Widmark (Skip Mccoy), Jean Peters (Candy), Thelma Ritter (Moe), Murvyn Vye (Capt. Dan Tiger), Richard Kiley (Joey), Willis B. Bouchey (Zara), Milburn Stone (Winoki).

Admirável lição de cinema da qual cada plano é marcado pela sensibilidade vibrante de Fuller, Anjo do mal é ao mesmo tempo o mais impessoal e mais autoral de seus filmes. Ele se inscreve na veia documentária do filme noir, ou seja: é um filme que utiliza diversas externas e descreve uma investigação que poderia dar um excelente artigo de jornal.

Quando era jornalista, Fuller com frequência andou pelos meios marginais aqui representados. Os méritos de Pick up são aqueles de um bom filme de ação, sacudidos ainda pelo frêmito elétrico que Fuller impõe a todas as suas histórias: caracterização aguda dos protagonistas secundários, e mesmo das "pontas" (o homem se empanturrando de arroz que vende informações para Jean Peters e cata com pauzinhos as notas que ela põe sobre a mesa); tempo vivo e às vezes ofegante; sábia utilização da profundidade de campo e de longos movimentos de câmera, com o fim de dar à ação sua dose justa de pimenta e realismo. (Aliás, o barroco de Fuller privilegia sempre os planos muito comprimidos ou muito largos, em detrimento dos planos médios).

Não esqueçamos também o humor, um certo humor sardônico e insolente que não é exclusividade de Fuller (ver os filmes de Don Siegel) e que tem um duplo efeito contraditório, muito freqüente no cinema hollywoodiano do pós-guerra; num certo grau, este humor distancia o espectador do filme. Mas ao mesmo tempo liga este espectador de modo mais eficaz à ação, solicitando sua cumplicidade. Fuller, aliás, deixa de lado este humor quando lhe parece adequado, ou seja, no meio da história.

Podemos julgar a respeito de seu talento, virtuosidade e controle do filme pelo fato de que a cena mais engraçada e a seqüência mais trágica da intriga tenham por protagonista o mesmo personagem, a velha Moe (interpretada pela perfeita Thelma Ritter, cujas composições foram inesquecíveis em Lettres to three wives, The mating season de Mitchell Leisen, 1951, e Janela indiscreta, etc).

Na primeira destas sequências, ela vende Widmark à polícia, segundo seus hábitos “profissionais”. Na segunda seqüência, ela se deixa assassinar, velha mulher fatigada, corajosa e íntegra à sua maneira, clamando pela morte como uma libertação.

Passemos ao aspecto mais estritamente “fulleriano” do filme. Toda a ação é vista segundo a perspectiva de dois exluídos socialmente, dois personagens que “de nada valem”, segundo os valores burgueses da sociedade; vistos, portanto, como traidores destes mesmos valores.

A semelhança profunda que existe entre Jean Peters, a aventureira e Richard Widmark, o batedor de carteiras (passado suspeito, dinamismo e vitalidade poderosos, situação precária de sobrevivência na selva das cidades) torna crível a paixão fulminante – “coup de foudre”- que eles, entre uma porrada e outra , passam a sentir um pelo outro. (Aliás, eles não vão parar de “se pegar” ao longo do filme).

O ponto de vista de Fuller é o de mostrar uma certa solidariedade, uma certa integridade entre estes personagens marginais, assumindo mais ou menos sua condição e adeptos semi-conscientes de uma moral que eles poderiam facilmente voltar contra os pilares sociais.

Personagens deslocados, desorientados, constantemente em desequilíbrio entre o universo dos bons e dos maus e sem pertencer propriamente a nenhum desses, eles permitem ao autor exprimir, no seio de seu pessimismo explosivo, uma visão moral e anti-convencional do mundo.

O anti-comunismo tratado no filme serve de critério de julgamento acerca da relativa putrefação dos personagens. Aqueles aos quais Fuller particularmente se identifica, como o batedor de carteiras interpretado por Widmark, se postam no limite do mal absoluto, mas jamais ultrapassam esta tênue fronteira. Quando são tentados a fazê-lo, seu anjo bom os impede (cena onde Jean Peters arrasta Richard Widmark).

Talvez por serem estes personagens os mais “superexpostos”, são também - dramática e moralmente - os mais tocantes.

Nota: Em uma sequência de emissão televisiva Cinéma Cinémas, Fuller comenta na moviola os primeiros planos de seus filmes e indica, em especial, que a estação do metrô e a cabine são, contra toda espectativa, cenários construídos no estúdio.

Jacques Lourcelles. Tradução de Luiz Soares Júnior.

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