quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O homem errado, Hitchcock

A liminar declaração de Hitchcock é clara: ele não usou o realismo de um fato qualquer para obter um grau suplementar de verdade, mas para fazer a economia da verossimilhança. Somos mergulhados em uma história cuja verossimilhança não precisa ser demonstrada ( o que é o papel, com freqüência ingrato, de todo autor de ficção), uma vez que ela realmente aconteceu. Richard Fleischer vai utilizar o mesmo procedimento em O estrangulador de Boston, 1968, e em 10 Rillinghton Place, 1971.
Em um primeiro nível, o filme, utilizando genialmente a câmera subjetiva e os cenários reais, é como o monólogo interior de um indivíduo médio, perturbado pelo que lhe sucede, desprovido de cólera, cedendo e depois recusando-se a ceder ( é aí que sua mulher assume a situação) à idéia que o destino fatal sofrido foi especialmente preparado para ele e torna, em consequência, toda revolta e iniciativa inúteis.
Neste nível, O homem errado é o mais belo filme kafkiano da história do cinema. Em um segundo nível, o filme desenvolve uma reflexão sobre a culpabilidade do homem: esta é mostrada como cúmplice de sua inocência. Esta reflexão, contemporânea e diferente daquela de Lang, pode no entanto ser-lhe comparada. Lang chegou, na última parte de sua obra, a ser assombrado pela noção de indiferenciação ( pelo caráter intercambiável) da inocência e da culpabilidade do indivíduo. Ele pensava ( vide While the city sleeps, Beyond a reasonable doubt) que a humanidade é tão culpada, tão corrompida que a inocência ou a culpabilidade de um indivíduo tornava-se algo de imponderável e finalmente indiferente na economia geral do mundo. Hitchcock é mais maniqueísta e menos desesperado. Seu maniqueísmo quer que a metade inocente da humanidade não possa “lavar as mãos” da culpabilidade da outra metade e deva, de qualquer maneira, responsabilizar-se por ela, pois de qualquer maneira a inocência não poderia deixar de lhe sentir os efeitos. O sósia de Manyy é também seu duplo. É relacionado a ele por uma ligação profunda que faz o mistério do filme. Hitchcock adere aqui a uma visão cristã do mundo, da qual o pecado original é a pedra angular. E a especificidade de O homem errado vem finalmente do fato de ser um filme kafkiano originado por um filme cristão, resumo impressionante e sem dúvida invertido da história espiritual do século 20. O sentido da obra, tanto quanto as peripécias da intriga, reduzidas aqui a uma fascinante nudez, nutrem o suspense veiculado pelo filme. Robert Brucks e Bernard Herrmann fizeram prodígios para colocar seu talento e sobriedade a serviço do gênio de Hitchcock, que nunca foi tão evidente e empolgante como aqui ( salvo talvez em Murder). Henry Fonda à altura de si mesmo.

Biblio: importante artigo de Jean-Luc Godard ( sua melhor contribuição ao cinema) aparecido , no lançamento do filme, em Cahiers du Cinema, número 62.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

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