quarta-feira, 3 de junho de 2009

Allan Dwan por Serge Daney

Discreto a ponto de passar desapercebido, frequentemente identificado com o que em profundidade ele não é, Allan Dwan não é nem o último sobrevivente da grande fase da Triangle ( o autor do famoso Robin Hood com Douglas Fairbanks) nem o pau mandado incansável , o símbolo característico dos diretores de filmes B. Ou melhor: ele é mais que isso. Ao curso de uma abundante ( e desigual) produção de filmes igualmente fracassados, interpretados por atores de terceira ordem, marcados por uma mesma precariedade de meios, se delineia aquilo pelo qual ele deve ser chamado: um certo olhar sobre o mundo.
É que a modéstia e a paciência são suas qualidades: cineasta maldito, Dwan faz da maldição o tema de seus filmes. Maldição estranha,que faz com que ninguém jamais seja julgado segundo suas motivações. Vemos correntemente em Dwan um dos representantes típicos do cinema de aventuras; ora, o que torna seu cinema precioso é, ao invés do culto da aventura, o momento onde esta se dilui e se perde. O momento também que o cineasta suspende-lhe o desenrolar para substituí-lo por intermináveis digressões. Os filmes de Dwan são feitos destas digressões, destes parênteses: tal filme que começa com uma cena de violência se coloca, dez minutos mais tarde, sob os traços de um melodrama familiar ou de uma comédia leve. Haviam julgado mal Dwan: se esquecemos nele os remendos da intriga ( ou antes: se estas são tão pouco ocultadas), é para melhor descobrir os fios da aventura, a verdadeira, aquela que se tece na intimidade dos seres.
Secreta, a arte de Dwan já o seria por sua modéstia, por sua recusa ao exibicionismo, se os heróis também não reivindicassem para eles esta mesma vontade de se calar, este mesmo empenho em salvaguardar- no próprio seio da violência- a intimidade dos dramas pessoais. Exigência de pudor, onde os mal-entendidos valem mais que as indiscrições, onde a incompreensão é preferível à exposição dos sentimentos. O verdadeiro problema se coloca, desde logo, não nas peripécias da ação mas todas vezes que a vida íntima dos heróis é ameaçada. Cada um vive com seu segredo, a coisa que lhe pertence intimamente, e de onde tira a gravidade de seus gestos e de suas palavras. Perder este segredo é um pouco como perder a sua razão de viver, sua justificação no mundo. Daí o empenho em preservá-lo. Para impedir seu amigo de se casar com uma piranha, John Payne está disposto, em Tennesse’s Partner, a correr os maiores riscos, a sacrificar tudo, até mesmo esta amizade. Em Surrender, onde a situação é a mesma, há perpetuamente um décalage ( um hiato, um desnível) entre o herói e o xerife que o persegue: em nenhum momento o xerife compreende as motivações verdadeiras do outro, e isto até o fim do filme, quando ele o mata. É ainda, em Slightly Scarlet, a amizade entre duas ruivas, Rhonda Fleming disposta a tudo para que o passado de sua irmã permaneça em segredo. Em outros, são estas vinganças pessoais, silenciadas até o fim ( Cattle Queen of Montana) ou ainda, em Sweetharts on Parade, o que para os outros é um simples “esbarrão” constitui para o herói comoventes reencontros. Assim, sempre os atos serão mal interpretados, suas razões profundas insondáveis, mas em Dwan, é este segredo, esta possibilidade de intimidade o que faz a diferença.
Para além dos inevitáveis mal-entendidos, as últimas cenas de Tennesee’s Partner- a obra-prima do nosso autor- nos dão a melhor imagem desta cumplicidade reencontrada, deste segredo enfim compartilhado, definitivamente recusado aos outros. O movimento dos seus filmes é, portanto, este: obrigar seus personagens, excessivamente fechados, muito vulneráveis, a se abrir lentamente. Cada filme é um pouco a aventura de um segredo e de sua desaparição: ou o levamos conosco para o túmulo, ou o dividimos com os outros.A partir daí, uma ligação simples se instala entre criador e criaturas: estas desejariam se precipitar, atravessar a tela, sem olhar em torno de si: um atirador rápido não tem tempo a perder, mas o cineasta tem todo o tempo a sua disposição. Exemplar em relação a isso é The restless Breed, que é também a história de uma vingança secreta. Desde o momento em que Scott Brady decidiu vingar seu pai, o cineasta se esforça em suscitar à sua passagem tudo o que o possa retardar ou distrair: um padre, uma dançarina, um velho xerife lhe exortam para que deixe a cargo da justiça o direito de vingá-lo.

Aí, as digressões, o tempo perdido, os saltos no tom não são mais os caprichos de um cineasta sem rigor, mas a prova que mesura a importância dos segredos. O caminho mais curto entre dois pontos não é mais a reta; é o meando que é necessário; o filme se torna um longo desvio entre o ultraje e a reparação. Ao curso dos encontros, o cineasta parece esquecer seu filme, e os personagens seus projetos: nesta vasta “cavidade”( creux), tudo pode acontecer, o acaso torna-se cúmplice do cineasta que o serve e que dele se serve.
Assim se explica que Dwan, capaz de se virar com qualquer coisa ( faire feu de tout bois), se acomoda da melhor forma possível à precariedade de meios: inversamente, não é seguro afirmar que ele conservaria, no cadre de uma superprodução, esta parte de invenção que lhe é necessária. Cinema disponível onde sempre chega o inesperado. Onde tudo é pretexto para descobertas. Descobertas cuja mais simples consiste na constatação de que o tempo é o bem mais precioso; é preciso perdê-lo em demasia para lhe dar valor. Nada de espantoso, portanto, em que Dwan, o Decano dos cineastas de aventura, é também aquele que se arrisca mais.

Dicionário do cinema, Éditions Universitaires, 1966.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Era uma vez no Oeste, por Serge Daney

Era uma vez no Oeste marca o apogeu ( e talvez o colapso) de uma série de filmes assinados por Sergio Leone cujo interesse é a priori imenso: eles constituem a primeira tentativa , embora pouco conseqüente, de cinema crítico, ou seja, não mais em confronto direto com a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica- que Leone conhece bem- tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma tradição cinematográfica, um texto global, o único que conheceu uma difusão mundial: o western. Não é pouca coisa.

Como um cinema crítico é possível? Desde muito tempo, os Americanos renunciaram ao western racista e beato ( DeMille); daí,a partir dos anos 50, um jorro de filmes humanitários ( Daves) ou crepusculares ( Ford, Peckinpah). Senso crítico, mas não cinema crítico. Este só poderia se elaborar “de fora”. Mas de onde, de que “fora”? De um dos raros países que possuía também um cinema de série, paralelo, tradicional e popular: a Itália. Ou, mais exatamente, Cinecittá no momento preciso em que o péplum corre perigo, minado por paródias ( já Sergio Leone aí). Ora, o essencial está aí: não que alguma demiurgia tenha decidido um dia fazer cinema crítico, subversivo e vagamente político, mas que este cinema seja antes de tudo ( ou em última análise) o único produto de uma evolução econômica. Trata-se apenas para Cinecittá de re-investir homens, cenários, figurantes e capitais em um novo gênero de filmes. Trata-se de “amortizar” ( reconstituição do capital empregado em uma compra). Estas origens vis e baixamente comerciais fazem ( farão/fariam/poderiam ter feito: o futuro nos dirá) a grandeza do western italiano. Por duas razões (ao menos):
1). Porque de que até então havia razões ruins para amar os filmes B, e é conveniente modificá-los. Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria robusta , o cinema B delimita uma espécie de lumpen-cinema ( cinema do lupemproletariado1), bom de qualquer modo pra fazer a máquina girar, amado de forma esnobe e contraditória ( em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo aspirar à qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos ( temas, situações) que ele ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais pra Zinnemann que para Dwan.
2). Admitamos hoje que na Itália alguma coisa que Hollywood não podia realizar era possível: a tomada de consciência deste lumpen-cinema, efetuando, sob a máscara das velhas formas ( portanto, sem negar seu caráter popular), um eufórico trabalho de desconstrução. “Uma força não sobrevive se em primeiro lugar se ela não toma de empréstimo a máscara das forças precedentes, contra as quais ela luta” ( Nietzsche).
Este trabalho pode ser bem realizado sob uma condição: que o western italiano conserve seu caráter de massa. Não se trata mais, sucumbindo à obsessão utilitária, de desmistificar em um único filme toda uma tradição, todo um conjunto de convenções e reflexos. Os resultados práticos de semelhante operação foram nulos, mesmo se os filmes belos ( Tourneur). Isto quer dizer que o western italiano deve ser produzido em massa e para as massas. E isto apesar do grande obstáculo: a recuperação pelo cinema de qualidade ( a arte e o ensaio, a burguesia) de individualidades excessivamente videntes, o que é o caso, hoje em dia, de Sergio Leone.
Quanto aos meios deste trabalho, começam a ser conhecidos ( mas admitamos que só foram seriamente utilizados nos filmes de Leone e do misterioso Sollima). Constituem ora a mostrar o que o western clássico ocultava, ora a exagerar o este mostrava. A força dos filmes de Leone está em extenuar a retórica habitual do western, em fazer da surenchére (supra-oferta) o equivalente de uma negação. Em relação a isso, seria interessante mostrar como ao western convencional, construído sobre o morceau de bravoure ( High noon, The tin star) Leone opõe uma seqüência ininterrupta de tempos fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um mínimo de sentido. Interessante de ver também como este cinema se dá a escolha dos meios (chamada também de gratuidade por toda uma tropa de bem-pensantes que é preciso obrigar urgentemente a ler os textos decisivos de J.J. Goux), como da beleza ( dos atores, e paisagens), da justeza de tal ou tal estilo de narração ( elipse ou tempos longos) ele faz um uso estratégico a tal ou tal momento. ( Isto no caso de Sollima e do magnífico Colorado). Etc. Quanto a Leone, de quem pouco se tratou aqui, é igualmente possível empreender desde hoje a decifração de uma obra já pletórica (superabundante, com muitos elementos) em tiques e “tropes” ( retórica, artigo decorativo).


Serge Daney.

Nota 1. Na terminologia marxista, parte do proletariado constituída por aqueles que não dispõem de recursos e caracterizados pela ausência de consciência de classe.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Ottobiografia

Preminger brada a todos os ventos: sou um cineasta realista. Piada? Não. Se ele roda um filme inteiro numa pequena cidade do Michigan, se filma em Chicago, Londres, no Canadá, em Saint-Tropé, em Israel, é para gozar de uma maior liberdade que em Hollywood? Pra encontrar um novo meio de publicidade, que vai desbancar todos os records atingidos até então? Creio que as razões essenciais são outras: em primeiro lugar,a redução do orçamento. Anatomy, aliás, foi filmado à incrível velocidade de quatro minutos de filme por dia. Depois, Preminger, móvel como sua câmera, adora as viagens. Ele tem necessidade de mudar de cenários, de abandonar os sunlights, outrora essenciais à sua arte, a fim de poder se renovar. A arte evidente mas indizível de Preminger necessita de um contato direto com a ordem da razão, um “botar os pés no chão”, um tema, um cadre bem precisos. Tanto melhor se as coerções realistas se opõem ao estilo clássico de Preminger , provocando de parte a parte algumas rupturas de tom. Há dez anos, entregue a si mesmo, Preminger não teria rodado cenas crepusculares sem iluminação nenhuma, não teria sublinhado os detalhes de nossa vida cotidiana, ele teria orientado a interpretação de Lee Remick para uma fascinação bem artificial, como a de Gene Tierney, e não em função de uma ótica realista. Aqui, em Anatomia de um crime, ganhamos nós, pois temos ao mesmo tempo a fascinação e o realismo mais cru.

Admirável é o realismo da interpretação dos atores secundários. Critica-se com freqüência aos Cahiers não falar dos atores. Pois bem, falemos! Dos vinte e cinco que figuram nos créditos, não há um ao qual se possa fazer a menor crítica. Eu falo de realismo. Mas, me refutem vocês, quase todos os comparsas do filme são estereotipados, inclusive James Stewart. Alguns gestos inclusive são frequentemente recorrentes nele; nunca tem fósforos, etc. É que a composição não exclui o realismo, este se situa ao nível do resultado, não da abordagem. Ela acentua a verossimilhança: a maioria dos personagens que se exprimem em público se incumbem de inventar uma atitude particular. É interessante notar as forçosas repetições destas atitudes e suas diferenças de um personagem a outro. A passagem detrás da barra de testemunhas evidencia estas diferenças: Paquette, empregado do bistrô que tem o hábito de enxugar os copos toda noite e que não quer falar, não sabe o que fazer com as mãos. Ao contrário do psiquiatra, o doutor Smith, muito descontraído, que enxuga seus óculos com este gesto largo e contínuo, tão típico em intelectuais americanos. Notemos aliás, em relação a estes personagens, a importância das aparências, do figurino em Preminger. O’Connel se decepciona ao ver um psiquiatra jovem e imberbe, portando um nome americano ao invés de um germânico ou sei lá o que, que foi imposto ao júri. Esta filosofia do figurino, a que devemos os mais belos toques humorísticos do filme, é a mesma de Carlyle, a quem a firma Preminger presta uma discreta homenagem. Preminger, como Carlyle sugeria que todo escritor fizesse, “looks through the shows of things, into things themselves». Mencionemos igualmente a espantosa complexidade de relações entre o advogado e seu ajudante Dancer, no papel do qual George C. Scott nos oferece uma composição de primeiro nível.

O personagem do velho bêbado que rouba e bebe uma centena de litros de uísque nos mostra que todos estes cúmplices se definem mais ou menos como personagens negativos. Sobre eles, gentil mas firmemente, Otto crítico, Otto zombador. Enquanto que, com o personagem de Paul Biegler ( James Stewart), Preminger “propõe”. É o herói positivo do filme. James Stewart, sublime, encontra aqui o papel da sua carreira. Apenas ele é o tema do filme; possui a idade, os modos, o humor de Preminger. E creio que devamos considerar Anatomy of a Murder como uma obra autobiográfica. De Preminger, encontramos a alternância entre a sisudez e o diletantismo, alternância que acaba por tornar-se identidade. Se o nosso cineasta, (ops! Perdão), nosso advogado é mais forte que os outros, se ele ganha o jogo, não é porque ele não leva a sério sua profissão, já que passa a maior parte do tempo pescando, tocando jazz. Ele ama a boa cozinha, tem por auxiliar um velho alcoólatra que toma iniciativas descabidas mas bem frutíferas. Por seu jogo, por sua forma de agir, Stewart-Preminger nos mostra bem esta confusão de valores. Ele é o mais forte porque está mergulhado na vida mais concreta possível.
É de qualquer maneira uma definição do honnête homme1 do século 20 que Preminger nos propõe. Alguns a poderiam qualificar de cínica. O maquiavélico Biegler não nos mostra um brio inacreditável na astúcia? Tão mais inacreditável por não ser especialmente enfatizado; brio que temos a surpresa de descobrir em seu estado natural, sem comentário, ao mesmo tempo que o espectador do processo. É preciso vê-lo interromper o interrogatório de Laura Manion sob falacioso pretexto de que Dancer se interpõe fisicamente entre a testemunha e ele para nos darmos conta de sua esperteza. Mas a astúcia levada a tal ponto denota uma inteligência muito grande para não ignorar a sensibilidade. De todos os grandes cineastas, Preminger é talvez um dos mais cruéis, dos mais lúcidos, mas certamente um dos menos malvados. Os cínicos são pessoas necessárias.
“Sobre um tema sério reencontramos aqui a mesma vontade de mesclar o divertido ao trágico que em A Grande Guerra, e a mesma ambigüidade sobre a significação do filme, que parece afeito antes de tudo para divertir e seduzir. Sem falar das insolências verbais que valeram, ao que parece, alguns incômodos ao realizador, e que se limitam a detalhes escabrosos e de mau-gosto, tais como as que se encontram em todos os processos, mas que não nos parecia indispensável reproduzir in-extenso em um filme de ficção. A menos de que se trate, neste caso, de habilidade e intenções publicitárias duvidosas”. Confesso não compreender esta crítica, expressa por Jean-Louis Tallenay no Radio-Télevision Cinema. Estas intenções publicitárias, evidentes, são ao mesmo tempo parte integrante do filme e absolutamente estranhas a ele: elas zombam daqueles que se chocam de escutar vinte vezes as palavras espermatogênese, slip, etc Estas diversas ambigüidades, que encontramos também em Hawks e Hitchcock, testemunham um humor superior. No momento em que o espectador pretende julgar um filme em função de critérios superficiais e extra-cinematográficos, é ele que passa a ser julgado pelo filme. O que é realmente cômico é igualmente profundo e sério. Não precisamos criticar em Preminger seu hábito do jogo duplo. É o público que cria a baixeza e enobrece o filme. Preminger é um verdadeiro idealista, que se opõe a estes falsos idealistas demagogos, marxistas ou puritanos, insinceros ao ponto de alijar da matéria de suas obras tudo o que lhes parece estranho a elas. Face a esta hipocrisia que bem rapidamente se revelou estéril, já que se funda sobre uma condenação da realidade em nome de um suposto “bom-gosto” que nosso tempo teve o mérito de sacrificar a valores superiores, Preminger nos propõe a inocência sob as aparências da culpabilidade. Ao puro, tudo é puro.
Luc Moullet, Cahiers du Cinéma, número 101, Novembro 1959

Nota:
1. Gentleman, cultivo simples e moderado da sensibilidade, oposto, na tradição literária e cultural francesa, ao homme précieux ( Préciosité), artificial e pedante.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Richard Fleischer

Não podemos contar com Richard Fleischer, nascido no Brooklyn em 1916, filho de um dos mestres da animação em Holywwod, criador de Betty Boop e Popeye, rival de Walt Dysney, etc, se quisermos gemer de forma romântica , hipócrita ou imatura sobre os obstáculos intransponíveis aos quais teremos de enfrentar quando carregamos um nome célebre e nascemos célebres.

Assim Fleischer inicia o livro que escreve sobre seu pai ( Out of the Intwell, 2005), livro que nos informa abundantemente sobre sua família e suas origens, complementando suas memórias( Just tell me when to cry, aparecidas em 1993): ‘Dizem que é difícil ser o filho de um homem célebre, que vc vive à sombra dele, que as comparações com ele são insuportáveis. Bem, eu fui o filho de um homem célebre, e não achei nada difícil esta experiência. Na verdade, foi formidável. (...)Longe de dolorosamente viver à sua sombra, eu me aproveitei da chance de poder me banhar na luz de sua glória.Quando eu era pequeno, bastava dizer ao dono de um cinema que eu era filho de Max Fleischer para ter uma entrada gratuita.”. E Fleischer continua, neste tom amável, reconhecido, sereno, a evocação da carreira de seu pai e, indiretamente, da sua.

Dirse-ia que o fato de ter nascido num meio confortável acentuou ainda mais neste homem qualidades sem dúvidas inatas: a serenidade de suas relações com seu próprio ego, a discrição, a modéstia, uma forma de equilíbrio íntimo na forma de trabalhar, de abordar e aprofundar um tema, do mais anódino ao mais atroz. Antes mesmo de abordar o que em sua obra releva da noção de autor no sentido estético-filosófico que este termo adquiriu no interior da expressão “política dos autores”, convém encarecer em Fleischer o autor de uma série de sucessos, o superdotado da mise em scéne que, em cada gênero que ilustrou, ( e Deus sabe o quão numerosos foram!) , buscou, consciente ou inconscientemente, mas sempre com a mesma paradoxal humildade, a inscrever o filme mais bem realizado, mais desconcertante, mais inventivo , mais definitivo. A tal ponto que muitos espectadores que mal conhecem seu nome reservam à camada mais profunda de suas lembranças cinematográficas um lugar à parte para uma ou outra obra-prima sua. Citemos casualmente alguns de seus sucessos: devemos-lhe entre outros o melhor filme de aventuras ( Os Vikings, documental e lírico, e jamais ultrapassado em seu gênero), a melhor adaptação de Jules Verne ( Vinte mil léguas submarinas), obra que se constitui também em um dos melhores filmes para crianças na dupla acepção do termo, ou seja: filme que deve encantar a crianças e adultos; um dos melhores filmes de guerra jamais realizados ( Between heaven and hell) , com seus personagens perturbadores, ambíguos, descritos com uma audácia insólita para a época, qualidade que vamos reencontrar em La fille sur la balançoire, evocação brilhante de um fato criminal e mundano. Não esqueçamos Soleil vert, fábula de ficção científica ecológica, intrigante e eficaz, e muito menos Barabbas talvez o melhor filme bíblico dos anos 60, filme ao mesmo tempo subestimado e muito imitado, que aqueles que o puderam ver em sua versão original em 70 mm jamais esquecerão.
Em todas as instâncias age o virtuosismo de Fleischer, tanto nas profundezas como nas superfícies. Ora ela delimita definitivamente certa tendência de um gênero afirmado ( a claustrofobia do filme noir encontra sua ilustração limite em The narrow margin, rodado em sua maioria em um vagão de trem), ora ela abre possibilidades que irão servir tanto a obra de Fleischer quanto a de outros. Desde 1949, com Follow me quietly, Fleischer inaugura, no interior do filme noir, a narrativa baseada na busca de um assassino psicopata ( ou “serial killer”), fundando um gênero à parte, que ele retomará em O estrangulador de Boston, e em The Rillington place, obra-prima absoluta na reconstituição documental de um incidente atroz, que coloca em causa a própria noção de humanismo. Em Viagem fantástica, ele lança o filme de miniaturização que se passa no interior do corpo humano, tentativa que Joe Dante vai concretizar de maneira brilhante vinte anos mais tarde, com Adventure interiérieure.

Durante muito tempo, acreditei que Fleischer havia aperfeiçoado seu virtuosismo nos filmes de ação de orçamento precário dos anos 40, feitos na RKO, em Eagle Lion. De fato, isto não é verdade. Ele já estava em seu primeiro filme, e desde este, Child of divorce ( 1947), permaneceu invisível por anos ( este primeiro Child eu vi apenas em 1980, quase um quarto de século depois da descoberta de Fleischer , autor brilhante de Violent Saturday e La fille sur la balançoire). Em Child of divorce, todo Fleischer já está presente, em tudo o que possui de melhor e mais original. ( É preciso sempre escrutar com atenção os primeiros filmes dos grandes cineastas: são com frequência eles que nos informam mais essencialmente sobre eles). Child não é de forma alguma um filme de ação, mas antes uma espécie de poema sociológico, ao mesmo tempo perspicaz e comovente, que mostra as conseqüências do divórcio de seus pais em crianças , deixadas pouco a pouco, não sem uma certa hipocrisia, num abandono afetivo quase total. Child of divorce antecipa os filmes ulteriores de Fleischer ao revelar em plena luz suas intenções ocultas, a saber, que para ele a utilização, a mise en valeur ( a colocação em relevo) características do filme de ação ( tempo vívido e cativante, acuidade e riqueza narrativas, crueldade insidiosa, violência) são apenas um meio eficaz para penetrar em profundidade em uma realidade moral e social que o interessa antes de tudo. E todo progresso técnico que possa servir a esta ambição, como o Cinemascope, será bem-vindo.
Como Preminger, Fleischer vê imediatamente como o novo formato pode ser usado para enriquecer suas intenções. Ele vai ajudar, por exemplo, em Violent Saturday a exteriorizar os diferentes aspectos de um tecido social particular, religando mais estreitamente e de forma mais natural , as evoluções dos personagens uns em relação aos outros no interior do plano, e permitindo que bom número de planos, aparentemente simples a visualizar, tenham de fato a mesma densidade e complexidade de certos planos seqüência ultra-sofisticados realizados no antigo formato ( 1’66). Com efeito, nos melhores filmes de Fleischer a descrição do tecido social onde evoluem os personagens ( ou seja, a mise au jour- a atualização- de um conjunto de segredos, de hierarquias, de lutas pelo poder, mais ou menos dissimuladas, a revelação das relações que cada um, de um extremo ao outro da escala social, entretém com o tema onipresente da violência) não é apenas um cadre, um pano de fundo, um cenário mas o próprio tema da obra.

Nesta ótica, Fleischer se interessa tanto pelo devir dos indivíduos quanto das sociedades. Poeticamente, sua imaginação dramática se curva às vezes a um esquema, ao mesmo tempo descritivo e explicativo, que fascinou gerações de historiadores e de artistas: o esquema ou ciclo que encadeia e une irremediavelmente grandeza e decadência.Em The vikings, este esquema chega a um acréscimo de fausto e de beleza pois aqui a decadência ( e a morte) do Viking agrega ao tema uma segunda beleza, uma segunda grandeza que vem se reunir à primeira. Ao contrário disso, em The new centurions, o olhar documentarista do autor pousa sobre uma decadência da noção de civilização, redundando na desordem trágica de uma sociedade que pretende viver sem interdições e sem regras ( “The donts are dying” é o leitmotiv da narrativa). E o filme aparece como o termo desta “sociologia desoladora” de Fleischer, inspiração à qual devemos uma parte de sua obra. Durante quatro décadas, apoiando-se sobre a diversidade de gêneros, tons, orçamentos que estavam à disposição na Cidade do Cinema e que faziam sua força, a obra de Fleischer é um dos exemplos mais brilhantes e criativos do milagre hollywwodiano. O menos espantoso nesse caso é que Fleischer tenha podido participar deste milagre até meados dos anos 70, ou seja, numa época em que o cinema de Hollywood iria ser definitivamente enterrado, obedecendo assim ao esquema “grandeza e decadência” que Fleischer tinha utilizado várias vezes em seus filmes.

Jacques Lourcelles

Tradução: Luiz Soares Júnior.



Introdução a obra de Cecil B. DeMille

Se me pedissem para eleger o mais belo plano do cinema religioso, eu deixaria de lado Dreyer, Bresson e Rossellini, e proporia aquele que afeta o espectador com um insuportável encantamento:uma perna de mulher abandona a máscara luxuosa de um biombo e se estira como uma serpente, quando duas perfeitas mãos igualmente saem de seu refúgio para orná-la de seda; ou então o plano onde podemos contemplar uma outra mulher seminua se extasiar com a carícia dos fluxos de ouro e pedras preciosas que ela dissemina pelo seu corpo.

Estas imagens que tentei descrever não pertencem a Mizoguchi, mas figuram em dois filmes do único grande cineasta cristão, Cecil Blount Demille. Trata-se de The affaires of Anatol e de Sansão e Dalila que, com um hiato de trinta anos, impõem a retidão exemplar de uma arte sempre juvenil e madura , mas também de um espírito que jamais se curvou.

Cecil Demille é um cineasta bem-aventurado. Seus filmes foram oferecidos a multidões e exigiam dos homens o exercício de um coração singelo e reto e de um julgamento são: sabemos que DeMille não se decepcionou com o acolhimento esperado. E os raivosos ataques da inteligência nada puderam contra seu magnífico e insolente sucesso.Meu professor de Letras comentava ironicamente Os dez mandamentos,e dizia: “Fala-se ali como na Bíblia”...Concordo com ele em que os diálogos dos filmes de DeMille e o estilo de Roland Barthes não se assemelham. Mas por detrás do tom ressentido do professor se oculta uma ingênua verdade, digna de uma criança de Anderson: é exatamente à altura da Bíblia que respira a obra de DeMille, e sem querer meu professor lhe acordava um certificado de grandeza e beleza.
A obra religiosa de DeMille é encarnada, e por este motivo especificamente cinematográfica e cristã. Ele não asfixia os frêmitos da carne e as palpitações do coração, como Robert Bresson, não recorre abusivamente a símbolos, como Rossellini. Sua fé recolhe sua riqueza da vida, e seus filmes, cheios de carne, ouro e sangue, destilam os confrontos às vezes épicos entre as graças e as desgraças, sem intenção demonstrativa. Eu não sei se DeMille é um autor. Eu não lhe reconheço uma temática ou um universo interior. Os cristãos das catedrais talhavam na pedra sua fé, sem se inquietar com direitos autorais. A mise en scéne de DeMille é talhada vivazmente no real , e a unidade de sua obra é a única realmente digna de interesse, ou seja, uma implacável fidelidade às fontes das emoções, quando a vida de um homem ou de uma mulher se transfigura em felicidades e sofrimentos. Que não venham criticar os temas bíblicos de alguns de seus filmes. A reprovação é em si absurda. DeMille, o cristão DeMille, age neste caso com lealdade, e não vejo porque os intelectuais europeus lhe recusam o que concedem a Veronese ou Poussin. Mas deixemos os intelectuais opinando e busquemos adquirir a serenidade imperturbável do nosso metteur en scéne.
Cecil B. Demille não é um moderado. Os transbordamentos de luxo em Sansão e Dalila, as orgias terrificantes em Dynamite ou as crueldades em Godless girl irrompem glacialmente na tela do cinema. A fabulosa Duesenberg de Kay Johnson em Dynamite ou as jóias de Heddy Lamar em Sansão são o escrínio eterno do pecado. DeMille não profere nenhum anátema, e aos discursos ele prefere o espetáculo nu dos vícios e perdições, fulminados por uma mise en scéne severa e intransigente, garantida pela profunda inocência de seu autor.
Em Belluaires e Porchers, podemos ler a admirável resposta de Léon Bloy aos acusadores de Barbey d’Aurevilly. Ele escrevia: “Ele, melhor que qualquer outra coisa, vê a alma humana nas vilanias e convulsões de sua Queda. É um mestre imagista da Desobediência, e nos faz pensar nestes escultores desconhecidos da Idade Média , que inocentemente mencionavam todas os horrores dos réprobos sobre os muros de suas catedrais”. Eu fico tentado a me apropriar deste julgamento definitivo e a aplicá-lo a DeMille. Este, com efeito, pertence à raça chamejante dos grandes cristãos violentos e sexuados, dos grandes aristocratas da fé, belos contendores dos bem-pensantes e do bom senso. E Demille é forte o suficiente para não subtrair destas imagens o terrível aparato da sedução. O que fascina em Sansão e Dalila não é tanto Victor Mature quanto o esplendor arrogante de Heddy Lamar, e sobretudo este cúmulo de cinismo e indiferença , quando o palácio desaba quando o rei de Gaza ( Georges Sanders) soergue um brinde de adeus, o rosto iluminado pelo sorriso libertino.
Pois Cecil B. DeMille, metteur em scéne generoso, idolatra demais tudo o que vive e que sofre para odiar seus personagens, fossem embora os mais detestáveis do Velho Testamento1: DeMille não julga, mas mostra. E seu olhar alia a compaixão à lucidez. DeMille não é prisioneiro de nenhum sistema religioso ou estético. Em sua obra, a emoção é um maravilhoso instrumento de conhecimento, pois a emoção é livre e simples, não velada pelas possibilidades opressoras de uma ideologia ou formalismo. DeMille, cineasta cristão, é também um homem livre. Se sua fé não sofre nenhuma acomodação, sua liberdade de espírito jamais suportou compromissos. Seu tenaz individualismo leva, enfim, a dizer que este é um grande cineasta americano, aparentado aos maiores.
Em Dez mandamentos, um povo geme sob o chicote, crianças e velhos sucumbem sob o peso da pedra: a inocência torturada sugere a DeMille belas cenas, que contam entre as mais duras que se pôde ver no cinema (vejamos igualmente The sign of the cross). A este apaixonado pela liberdade afeta particularmente a infelicidade , e no entanto nenhuma complacência enternece estes grandiosos planos de escravidão e opressão,que compõem o inevitável corolário do pecado: a luz insana do enxofre que brilha ilumina ainda a soberba liturgia do Mal. Neste sentido, Godless girl oferece a mais assustadora visão das obras de Satã, onde crianças e adolescentes são entregues aos suplícios monstruosos organizados meticulosamente para eles numa casa de correção nos Estados Unidos. Este espetáculo infernal de jovens espancados ou jogados em uma pocilga horroriza e espanta ao mesmo tempo: Godless girl possui uma tal densidade de selvageria e brutalidade que apenas abordaram os grandes contendores do Mal. No entanto, gostaria de me abster de qualificar este filme de fantástico, pois esta lucidez trágica e intuição religiosa se confundem, de fato, com um realismo simples e terrível, despido de toda intenção polêmica ou demonstrativa. Apenas uma sociedade jovem e leal, a sociedade americana, pôde engendrar um cinema tão preciso, tão adequado e tão indomável. Eu não me prolongarei de forma abusiva sobre os infernos de DeMille, e aliás demonstrarei como o cavaleiro do Santo-Sepulcro conheceu, de forma diametralmente oposta, a visão do Éden, e que este grande poeta da infelicidade e da violência é antes de tudo o poeta da alegria e da doçura.

Cineasta americano, DeMille é em primeiro lugar pelo seu caráter religioso. Há em seus filmes uma vontade de simplicidade dramática e de clareza um tanto brutal que só surpreendem europeus absorvidos pelas delícias de Capoue, muito felizes de se ver justificados pelas maquinações eclesiásticas 2. Ora, o cinema americano, primeiro o de Ince e de Porter, depois o de Walsh e DeMille, era o fruto de uma civilização virgem, , onde não se via Igrejas a elevarem a Cruz nos altares, mas homens e mulheres purificados pelo exílio construírem, Bíblia na mão, uma nação. É preciso um esforço corajoso da imaginação para compartilhar a fé destes homens do Novo Mundo, pioneiros, escritores ou cineastas, que tomaram da Escritura o princípio exclusivo de seu pensamento e ação. A paixão européia pelos westerns se assemelha a uma confusa nostalgia por uma era quase mitológica, enquanto que estes americanos são contemporâneos das épocas que ilustram.
A biografia de DeMille escrita por Michel Mourlet é bem esclarecedora, pois se identifica exatamente à história do Cinema americano e que tem como medida a própria América: é a vida de um pioneiro e de um fundador, mas também a síntese e o símbolo de um grande sucesso coletivo. Paul Morand escreveu: “As estradas são a expressão da inteligência, da cultura e da liberdade de uma ação”. Transcrevi esta bela frase pois me permite introduzir um gosto original de DeMille, cuja importância não deixaremos de assinalar. Union Pacific, magnífico western, é também, se ouso falar assim, um grande filme de “amor ferroviário”. Construir rotas, estabelecer grandes vias de comunicação: ao contar a história de uma linha ferroviária, DeMille eleva sua arte ao coração da América juvenil e conquistadora. A energia maravilhosa deste filme extasiado e musculoso , onde o trilho e a locomotiva resplandecem de potência, glorifica o espírito de uma nação.
DeMille adora as viagens, os meios de locomoção e particularmente os caminhos de ferro, - pois estes caminhos de ferro, ainda mais que as estradas, estão à altura da nova coletividade, justificam a ambição e a consciência de uma civilização essencialmente voluntarista e confiante. Cecil DeMille é provavelmente “ o mais americano” dos grandes cineastas americanos. Que me compreendam bem: não penso que sua obra iguale a universalidade e a riqueza de Raoul Walsh. Mas se gerações futuras quisessem conservar um único testemunho da civilização americana, talvez devêssemos salvar Union Pacific. Em uma larga medida, DeMille fundou o cinema americano. Por isso ,a ninguém surpreenderá que seus heróis favoritos sejam “fundadores de impérios” e que estes, se não esmaecem sob a fachada da coletividade, tornam-se suas pedras de toque: o herói de Union Pacific não tem outro propósito senão servir.

Este sangue de grande raça faz florescer em força e brilho a obra inteira de DeMille; enfim, este talento perfeito que é ser Americano triunfa em uma obra-prima encantadora, The Greatest show on Earth. As crianças, que ainda não tiveram o gosto pela vida e a liberdade do amor seviciados pela escravidão universitária, foram os grandes cúmplices do sucesso mundial do filme. O circo! Quando a gigante tela se ergue, se infla, se desdobra e se estende soberbamente em torno dos mastros , quando o padre abençoa a locomotiva que conduzirá o circo através da América e as hastes se afogueiam sob a grandiosa respiração do vapor, o coração palpita como se assistisse ao nascimento de um mundo e uma arte conjugados. The Greatest show on Earth reúne as condições exemplares do desabrochamento de um gênio lúcido e totalmente sob domínio: cada plano faz ressoar a vida em plena luz, a narrativa e a viagem a conduzem sob o ritmo aleatório dos grandes expressos intercontinentais. Cendrars ficou maravilhado por este filme onde as paixões, as alegrias, as dores se engendram e se dispersam no entrelaçamento dos espetáculos do circo, onde sua intensidade varia segundo a dificuldade de um trapézio, o capricho de um elefante e o número de quiilômetros de um trilho. Sinto-me singularmente desamparado para apenas sugerir a prodigiosa vitalidade desta mise em scéne, sua complexidade e sutileza. A energia de que falava a respeito de Union Pacific se intensifica em The greatest , ela se dispersa por todos os lados, nas coxias, sobre a pista, entre os espectadores. Recebe sua apoteose ao fim do filme, depois do acidente de trem, quando DeMille mostra, em um extraordinário plano de conjunto, a cavalgada improvisada pelos sobreviventes conduzir para um “théatre de fortune” ( teatro de variedades em Paris) a multidão em delírio, e a maravilhosa Betty Hutton em cima de um elefante cantar ao amor, o amor do circo, o amor da vida.

Barrès deu a uma de suas heroínas o nome de “Nossa Senhora do vagão do Sleeping-car” ( Três estações de psicoterapia): o trem é talvez o objeto que mais fascinou alguns civilizados excitados pela modernidade (Cendrars, Morand, Honegger),e desde sua origem o cinema americano lhe consagrou as mais belas sequências: Edwin Porter: The great train robbery; Raoul Walsh: Colorado Territory, White heat; Fritz Lang: Human desire; enfim, Cecil B. DeMille. Como as princesas da corte de Louis XVI que se deixaram seduzir pelos balões de Montgolfier, estes príncipes do espírito não desdenham o prazer da velocidade e de uma cadência novas, a beleza do ferro e dos cavalos a vapor. Se DeMille ama a tal ponto os caminhos de ferro, é porque as virtudes de uma Crampton ou de um Pacific 23 são também as de sua mise em scéne: poderosa, rápida, nervosa, violenta, elíptica, sólida sob todas as dificuldades, mas monumental e ruidosa.Uma arte nova se inventa para trabalhar matérias e energias novas: a arte de Cecil B. DeMille é essencialmente moderna. Maurice Barres foi o primeiro a compreender que os sentimentos não vagabundeavam mais ao ritmo das diligências, que não se poderia mais escrever Adolphe ou Le Lys dans la valée, e que a língua francesa deveria buscar em si um novo classicismo, lição recebida por Paul Morand, Jean Cocteau, Roger Vailland ou Jacques Laurent.

Assim, os melhores planos dos filmes de DeMille fulminavam verdadeiramente pela surpresa da elipse, da violência e da singularidade do tema, a síntese e concisão da mise en scéne, a acuidade do enquadramento. Já aqui evoquei várias vezes, e não descreverei mais, o catálogo destes objetos preciosos que fazem a narrativa se romper como certos versos de Racine , e aos quais atribuiríamos as qualidades dos metais raros. Enumerarei três, cuja evidência súbita desempenha um papel audacioso. Dois primeiro em The greatest show on Earth: o primeiro em que Cornel Wilde cai do trapézio e se esmaga sobre a pista, projetado brutalmente até o solo por um movimento descendente de câmera, o segundo onde Charlton Heston , intrigado pela demissão de um sorridente Cornel Wilde que acabara de voltar do hospital, aparentemente restabelecido, arranca o impermeável que cobre seu braço esquerdo e descobre bruscamente um horrível coto de braço. Só os iguala em vigor este plano noturno em Union Pacific onde vemos, face à câmera fixada sobre um trem em marcha, um cavaleiro assomar neste trem e saltar sobre um vagão, enquanto o cavalo permanece no alto do trem!

Cecil B. DeMille, cineasta moderno. Fiquei bem tentado a escrever que este Americano, que este cristão era profundamente anti-moderno, à maneira de Raoul Walsh ou Allan Dwan, ou seja, da forma como entendia Péguy. Em conjunto com um sereno desejo de construir um Novo Mundo, DEMille herda da velha América e de Fenimore Cooper uma desconfiança da civilização urbana que se desvela nas deliciosas comédias satíricas do cinema mudo , dentre as quais a melhor permanece sendo The affairs of Anatol, crônica ácida e refinada da alta burguesia de Nova York. Mas DeMille é muito orgulhoso e reto para sustentar um paradoxo: de fato, quando digo que sua arte é essencialmente moderna, afirmo que DeMille praticou uma mise en scéne que elevava sua época, dando-lhe uma alma.

Paul Morand é sem dúvida o único escritor que soube nos falar de uma Bugatti ( Buda Vivo), mas o autor de Da Velocidade nos ensinou também o gosto pela lentidão, o charme de um grande rio preguiçoso, os prazeres eqüestres: Milady. Giraudoux não se enganou- estes loucos pelo volante são apaixonados por suas aldeias. A obra de DeMille converge para uma necessidade de equilíbrio, um desejo de calma e de repouso, uma luz mais doce e paisagens menos tormentosas. The squaw Man ( 1931), belo filme pudico, conta-nos a busca infeliz da felicidade conjugal. Um ternura infinita, um sorriso ferido não podem impedir a fulgurante destruição de uma paz íntima que DeMille descreve com um tato admirável. Esta obra-prima de emoção e de delicadeza atinge ápices de nobreza: quando a índia oferece a seu filho o cavalinho de pau que fez para ele e o pequeno o troca pelo trem mecânico que lhe deu o pai, a infeliz, imóvel, petrificada, olhos inundados de lágrimas, ressente de súbito a crueldade e o peso da infelicidade, o atroz estilhaçamento de uma felicidade perdida.

Os filmes de DeMille reservam, entre os gritos de danação, as lágrimas das vítimas ou os estrondos das máquinas, oásis agrestes de silêncio e de frescor onde parecem se realizar os idílios frágeis. Encontramos em Sansão e Dalila, Dez mandamentos e sobretudo em Godless girl estes radiosos instantes onde natureza, o herói e os sentimentos, purificados de toda impureza, se ordenam sob o milagre da candura divina: incursões fabulosas dos sonhos de um cristão que não se consola com a Queda.

Pradarias visitadas por santas, uma pequena camponesa tocada pela Graça, um pobre casebre da Lorena em que se reconhece Georges de La Tour: as aldeias secretas de Cecil B. DeMille assemelham-se ao Paraíso. Joan the Woman revela a intimidade absoluta do cineasta com seu sonho, na adoração cúmplice para com a jovem Santa do povo. A vida de Joanna D’arc suscitou muitos filmes, mas nenhum que seja animado de uma fé tão assegurada, de uma fidelidade e humildade tão exemplares. Esta santidade triunfal que ilumina as angélicas cenas da infância ou os êxtases sobrenaturais dos combates reconcilia na realidade das obras de Deus as duas aspirações de uma mise en scéne que aspira à serenidade e conduzida à ação.
Joan the woman: o classicismo de uma arte recém-nascida, plenitude espontânea de um olhar e de uma mise en scéne tão exatos que Louis Delluc podia ver na Joanna D’arc do Americano uma grande obra “francesa”.
Michel Marmin.

Notas:

1. Nos Dez mandamentos, aliás, Ramsés é um personagem bem mais comovente que Moisés, ,que é apenas um instrumento de Deus, e o combate desesperado que ele empreende pelo seu Criador lhe confere uma grandeza que situa o filme numa perspectiva essencialmente trágica.

2. Os Dez mandamentos, talvez o filme mais sóbrio na história do cinema, conduz a tragédia com um despojamento exemplar, recusando rigorosamente o que não lhe é essencial, - daí a pureza quase abstrata de seus cenários e figurinos, a condensação teatral da mise en scéne, a sobriedade hierática da direção de atores ( Charlton Heston e Yul Brynner igualmente admiráveis), características que nos remetem irresistivelmente a Poussin.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Revisão: Matheus Cartaxo.