terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A filosofia na alcova: nota de intenção. Por João César Monteiro.

‘”Vocês me fazem morrer de volúpia!
Conversemos e dissertemos”.

Sade
1. Sobre os textos.

Utilizamos para o texto da Filosofia na alcova a edição da Plêiade, conforme a edição publicada como obra póstuma, em 1795.
“Segundo os Princípios da Biblioteca da Pléiade, as grafias foram modernizadas. Mas só transformamos a pontuação com a maior discrição possível, e mantivemos todas as formas lexicais antigas que pertenciam à língua de Sade como homem do fim do século XVII e como escritor, amante de neologismos e de criações verbais”.

É conveniente mostrar que a Filosofia na alcova se destinava provavelmente à representação teatral. Para nos convencermos, basta ler a rubrica inserida entre o sétimo e o último diálogos: “Os seguintes pronunciamentos se fazem sempre quando os atores estão em ação”.
É agradável constatar que nada impede a conversão do texto em matéria cinematográfica.
Cortamos, embora eu não jurasse isso pela alma de minha mãezinha, no quinto panfleto o “Franceses, ainda esperamos de vós um esforço, se quiserem ser”..., menos por causa de seu anacronismo ( sabemos que é um que programa de proposições republicanas posterior ao fim do Terror) que por sua extensão, o que lamentamos. Devo dizer que este corpus do Filosofia na alcova não tem nada de “estranho” para mim. Pensei muito em Proust ( ou Stern?), mas provavelmente isto não passa de um deliriozinho. Passemos.
Em seu lugar, introduzimos um texto de Leopardi intitulado “Diálogo de Torquato Tasso e de seu gênio 1 familiar” ( Pequenas obras morais). (...)Enfim, igualmente tomamos a decisão de terminar o filme com um enigmático “Fim da lição”.
Para além da pequena ironia desta inscrição, espero que me façam a bondade de não ver nisto nenhuma pretensão didática de minha parte.
Reservamo-nos ainda a eventualidade de mudar a famosa epígrafe “A mãe vai prescrever a leitura à sua filha”, inspirada, como bem se sabe, por um folhetim, anônimo e difamador, contra Marie-Antoinette ( A mãe vai proscrever a leitura à filha) 2, por uma outra: “O pai vai prescrever a leitura a seu filho”,e também, por razões compreensíveis, as descrições físicas dos personagens. Fora isso, nos mantivemos no integral respeito à palavra sadiana, em toda a sua abrupta magnificência.

Como se sabe, o propósito da obra de Sade é a educação, no sentido pedagógico, de uma jovem virgem, educação que se desenrola num período histórico onde se operaram grandes transformações políticas, econômicas, sociais, etc,. que tiveram conseqüências em todos os domínios do pensamento e das atividades humanas, dentre as quais algumas perduraram ( e perduram) até os nossos dias, e constituem o que chamamos o mundo moderno.
Se a educação de Eugénie só sem sentido à luz de uma revolução libertina que não se deu ( e, neste sentido, Sade se enganou, mas pagou caro por seu erro), também é verdade que seu caráter inatual e a-histórico a deixa ao sabor do vento e do saber premonitório de qualquer um.
Não nos remetemos aqui ao anúncio da morte de Deus, da morte do homem e da defesa indignada da abolição da pena de morte.
2. Sobre os cenários
Jamais cheguei a ver um cenógrafo. Encontrei um, chamado Max Schoenlorff, e fiquei encantado com ele. Me pareceu ter as qualidades requeridas, ou seja, o saber de projeção no espaço. O problema é que a criatura é desconcertante: embora se consagre à pintura, o que lhe interessa não é a cenografia, mas a filosofia. Onde já se viu acordo entre um filósofo e um célebre filófobo?

O salão ( diálogos 1 e 2). Completamente nu. 12 metros sobre 4. Em um dos muros, uma série de quatro janelas, em arco, por onde penetra a luz. O muro que lhe faz face não contém nada, talvez mesmo não exista. Duas portas opostas e semelhantes, de 2 metros de largura, a cada extremidade: uma aberta, a outra fechada, uma de luz e sombra, outra de sombra e luz. Pela luz sai o cavalheiro e entra Éugenie, pela sombra sai Mademoiselle de Saint-Ange e sai Eugénie.

O banheiro ( diálogos 3, 4, 5, 6 e 7). Um cilindro de 9 metros de diâmetro e 4 de altura, com um círculo de espelhos em volta. Uma clarabóia no alto, por onde entra um fio de luz que se desloca no sentido do movimento aparente do sol. Uma chaminé, situada no segmento oposto ao muro. A espessa porta é a igual distância da janela e da chaminé, ou seja, 90 graus de uma e da outra. Diante da porta, a 180 graus, um cubo de 2 metros, cujo interior, mobiliado com um leito e possuindo uma iluminação autônoma de gás, pode estar protegido por uma cortina branca. O solo é formado de 37 polígonos de um metro cada. O polígono 27 é uma passagem escondida sob um tapete que dá acesso a um subterrâneo.
Os móveis são poucos e funcionais: uma poltrona otomana, bancos atapetados,biombos...
Uma mesa em forma de cruz, magicamente tirada para o banquete final, dominada por um prato que contém um peixe imenso, debruçado em seu leito de sal grosso e alguns patês de atum, que o marquês amava tanto, para tornar agradável o palácio aos quatro personagens que permanecem até o fim: Saint-Ange, Augustin, Dolmancé, Éugenie, ou, se preferirem,: S ( anjo), A, D, E.

Carnes vermelhas? Não posso sequer sentir-lhes o cheiro, quanto mais vê-las!

EXTERIOR NATURAL. DIA MUITO ENSOLARADO. SERRA DE MONTESINHO.


Inicialmente, escolhemos situar o Diálogo de Leopardi, que “viaja” num interior noturno, em uma floresta com um lago. Isto nos permite sair do espaço fechado e colocar o personagem do jardineiro em uma serena natureza, aberta à plena expressão de “seu” pensamento ( finalmente ele possui um, se aceitarmos o paradoxo), fora de um espaço onde ele não passa do objeto de servidão, às ordens dos apetites eróticos de seus senhores.
Pouco a pouco, fomos eliminando a floresta, para chegarmos a uma montanha dura “seca e estéril”, e, na inversão do reflexo do duplo, destruindo assim toda ambigüidade narcisista, e de uma certa forma o transformando, sob as súplicas das “ondinas” românticas, em um eterno habitante das águas lacustres, negras e primordiais.
3. Sobre os figurinos.
As roupas devem ter um caráter intemporal, apenas retendo uma sugestão ou reminiscência de época. Logo abriremos mão delas, quando seu uso não for mais aconselhado. E isto por que? Pela simples razão de que o que se chama a ars erotica em Sade não passa pela forma de se vestir nem pelo uso perverso ( moral). Sade não é Versace, e ainda menos o “venusiano” SS Hugo Boss. Também não vai bem com as roupas de V... e de seus semelhantes. O valor das roupas em Sade é implacavelmente funcional. Neste sentido, pode-se consultar o livro de Barthes, Sade, Fourier, Loyola, na coleção Tel quel.

A cada personagem sua cor:

Mme de Saint-Ange: azul safira; negro.
Chevalier de Mirvel: creme.
Eugénie de Mistral: rosa envelhecido; negro.
Dolmancé: violeta.
Agostino/Duplo: azul ( cenas, 5, 7, 8 e 9); negro/branco ( cena 6).
Mme de Mistival: branco perolado.
Lapierre: verde.
4. Sobre a imagem
A iluminação. No salão, a luminosidade terá uma tonalidade clara, proveniente das janelas, queimando do exterior.
Na alcova, a luz de base será mais ou menos a penumbra, com exceção da luz que vem da janela, onde será instalado um vitral multicolorido. A iluminação do cubo é autônoma, bem contrastada, podendo mesmo criar um efeito de noite em pleno dia. No sétimo diálogo, a luz rasante e crepuscular provém da porta aberta, de maneira a favorecer a invasão de uma sombra propícia à entrada de Lapierre no círculo, e de uma contra-luz bem violenta na saída deste, ou mais dócil à saída da mãe ou do cavalheiro que a segue. No contracampo com a mesa, a noite cai. Que se poderia fazer além disso? Acendem-se as velas...No exterior, é preciso para o lago um artifício que o torne espelhante e um refletor que funcione como uma nuvem passageira, capaz de ocultar o sol. Nos daremos conta assim do sonho criminoso e não consumado do marquês: assassinar o astro-rei. Monarquista e royalista, sem nenhuma dúvida, apesar dos mal-entendidos republicanos.

A representação imagética. A representação de práticas sexuais foi mais ou menos mostrada em todas as épocas e todas as civilizações, segundo critérios mais ou menos permissivos. Nós a encontramos, por exemplo, sacralizada nos templos hindus ou miseravelmente vulgarizada pela teleglobalização de nossa sociedade. Em nossa opinião, o que pode ser chocante nisso é a regressão contemporânea em direção a uma baixeza de que crapulosamente ( se quisermos nos divertir um pouco e continuar a embaralhar as cartas, encontramos no Robert o termo “crápula” associado por Proust ao prazer sádico) se aproveitam os produtores.
Em Sade, a composição dos tableaux ( quadros) advém de um imaginário fantasmagórico, provocado pela solidão de sua condição de prisioneiro. Se admitirmos que o classicismo é o apogeu da forma, o maneirismo um formalismo, portanto uma crise da forma, encontramos aqui uma organização especificamente barroca, ou seja, a liberdade soberana da imagem e seus múltiplos e intermináveis jogos de espelhos.
Para pensar em cinefilia au vent 3 ( quel vent?), não estamos longe de uma coreografia à la Busby Berkeley . Infelizmente, não pensamos como um cinéfilo “dans le vent”. Que mal há nisso?
5. Sobre o som.
A “sonorização" agora, se faz favor.

Partis pris 4 feroz do som direto.Corpo acústico realista ( voz mais ambiências campestres), nas cenas do salão e da floresta. Tomada de certas precauções na cena da alcova: isolação do espaço sonoro de maneira a privilegiar a clareza e modulação das vozes, através de uma pureza acústica próxima daquela que se pode encontrar numa boa sala de concerto. Basta-nos visitar o quarto de dormir do duque Frederico de Montefeltro , no palácio de Urbino, para nos darmos conta dos cuidados concedidos à organização acústica. Trata-se de criar as condições que permitam a um ouvido bem treinado fruir de todas as fontes auditivas, inclusive as da amplificação, como elemento fundamental de erotização do espaço. A voz será então o elemento primordial de sedução em um jogo de entrecruzamento das linhas melódicas. Kierkegaard, que não se engana jamais, já o disse a propósito de Mozart.Dito isto, adoraria igualmente chamar a atenção sobre a construção rítmica de Sade. Pode-se ver que ela se dá em dois tempos: o tempo do logos e o tempo do eros. Ora, nossa economia cinematográfica não exclui, tirando desvios seriais, esta cisão: ela será rigorosamente binária, um pouco como nos filmes de Hawks, mas sem quebrar o que chamamos o movimento perpétuo. Digamos: indo sempre adiante.
6. Sobre a caracterização dos personagens.
Dolmancé. Ele é o mâitre a penser 5 e o que conduz o jogo, subentendamos isso no sentido teatral de mise en scéne. É um libertino com muitas convicções. É preciso explicar o sentido do termo nos séculos XVII e XVIII? É suficiente talvez mencionar seu ateísmo materialista e uma vida privilegiada, votada aos prazeres. Mas para complicar um pouco nossa tarefa, ele é bem mais que isso: ele possui uma dupla personalidade, que sobretudo não podemos confundir com o sentido moderno de desdobramento, dado pela psicanálise. Seria um equívoco bem perigoso, e um tanto quanto doentio! Em Dolmancé, este comportamento não provoca nenhuma perturbação. Ele é lúcido o suficiente para separar as esferas.
Portanto, por um lado, temos um personagem que se move numa pequena sociedade, fechada e secreta, a dos libertinos, e por outro, um personagem socialmente respeitável e respeitado pelo poder político ou judiciário, onde provavelmente ele desempenha um papel importante.
Já aí há muito do que rir, mas, para ficarmos sérios, precisamos acrescentar que este comportamento resulta de uma enorme decepção do personagem, fundada sobre sua experiência da natureza humana e da hipocrisia social.

Mme de Saint-Ange. No início, somos tentados a acreditar que a personagem possui um apetite feroz e irrefreável por uma jovem virgem. Ela não pôde satisfazê-lo, dadas as circunstâncias ( um convento).Tendo refletido sobre o objeto de seu desejo, a personagem concebe e prepara um plano mais sofisticado, onde a educação será o tema principal.
Sublinhemos que no diálogo com o padre, cúmplice incestuoso, a personagem confessa seus furores uterinos e a fraqueza em não resistir a seu temperamento. Moderada pela idade, a Saint-Ange não exclui a hipótese de tornar-se devota. A seqüência dos eventos nos demonstra que, apesar de sua cumplicidade e devoção, raramente ela estará à altura de Dolmancé.

Eugénie de Mistival. Se julgarmos bom o ensinamento dos Gregos, que pregam a superioridade do discípulo sobre o Mestre, então estamos largamente satisfeitos aqui. Com efeito, a personagem ultrapassa todas as expectativas; partindo do grau zero de uma inocência que beira a inverossimilhança ( lembremo-nos de que Eugénie, com quinze anos, não conhecia nem o nome nem a função dos órgãos genitais, apesar de sua educação em um convento e de pertencer a uma família cujo pai, reputado libertino, é o mestre e senhor, em oposição a uma mãe devota e submissa), ao termo de cerca de quatro horas sua nova educação está perfeitamente realizada. Seu devotamento a Dolmancé é total. Sua riquíssima e preciosa aquisição? O nascimento de uma mulher livre. Encontraremos facilmente ecos disto em outras personagens femininas do marquês. Em Juliette muito certamente, mas também, por que não?, em uma nova Justine, uma über-Justine 6, no sentido nietzscheano da expressão.

Em nossa opinião, e contrariamente à opinião corrente, Eugnénie forma com Dolmancé o verdadeiro casal ( se casal há) da obra no sentido de uma afinidade eletiva, mesmo se esta união se mostra impossível: a liberdade absoluta é votada à absoluta solidão. Nos desertos do amor, nenhuma religião é tolerada, nenhuma re-ligação. Estamos no pleno domínio do inominável, para além de toda e qualquer ataraxia.7 A esfinge reina.

O chevalier de Mirvel. Noblesse oblige, claro, mas o personagem não está lá, segundo sua irmã, para “fazer sermões”.
Sejamos claros, o cavalheiro convenceu o sodomita Dolmancé a fazer uma visita a sua irmã a fim de que, num caso excepcional, este a sodomizasse. Felizmente: o gênio consiste no erro no sistema. Em recompensa, Saint-Ange lhe promete o “descabaçamento” da buceta de Eugénie, colocando-lhe a par de seus projetos libertinos. Nos vemos diante de um híbrido dividido entre a herança libertina de seu meio social e suas convicções rousseaunianas. Para além da satisfação de seu apetite sexual ( prazer simples), é evidente que este rapaz de coração aceita a contragosto as crueldades dos outros personagens. O cavaleiro possui uma função mais próxima da dos criados, mesmo possuindo o privilégio do uso da palavra, e que se lhe conceda o privilégio da leitura de um panfleto, menos pela virtude de seu órgão vocal que pela beleza de seu órgão genital.

Agostino. Em Sade, o personagem do jardineiro é reduzido, segundo os hábitos da casa, à sua condição de puro objeto erótico. Seu quase-dialeto provençal vem talvez de Moliére, mas também é talvez pelo conhecimento direto que Sade tinha do dialeto.
Por sua condição de criado, Agostino executa tudo o que lhe é ordenado. Antes da leitura do panfleto, ele recebe a ordem de sair: “Isto aqui não foi feito pra ti”.
Nós o seguimos, dando-lhe uma palavra, portanto um pensamento, o de Leopardi.
Podemos nos perguntar porque o texto de um poeta romântico, embora este romantismo tenha saído do iluminismo, seja posto na boca de um criado. A resposta é inequívoca: tenho horror à servidão, e a clemência do caçador não me é totalmente estranha. Provavelmente também porque há em Leopardi um desespero ao mesmo tempo negro e feliz. Se é verdade que este diálogo está mais próximo de Plotino que de Lucrécio ou Sêneca ( ou, se assim o quiserem, mais próximo de Petrarca que de Laure), não é também pelo fato de que as prisões da servidão e da solidão estão mais próximas umas das outras? Dizendo de outra forma, sem esquecer a singularidade destas duas vias, pensamos que com Sade e Leopardi estamos face à mesma busca ontológica da felicidade. Impossível? Sim, talvez.

A título de curiosidade, queria chamar a atenção sobre uma das passagens mais misteriosas e mais sutis de toda a história da literatura: a do famoso segredo que Dolmancé confia a Agostino, no final do quinto diálogo. Leiamos:


Dolmancé (...). veja o pouco caso que faço. ( referindo-se ao cu de Agostino, que beija). Vou lhes suplicar, madames, a permissão de ir um instante na cabine vizinha com este jovem.

Saint-Ange. (...) Não pode fazer aqui tudo o que deseja fazer com ele?

Dolmancé ( baixo e misteriosamente): Não, há certas coisas que necessitam absolutamente de véus. (...)

Saint-Ange. É portanto uma tal infâmia que não sejamos dignas de ouvir e ver?

Le chevalier. Calma, minha irmã, vou lhe dizer. ( Fala baixo com as duas mulheres).
Eugénie, com ar de repugnância. Ele tem razão, é horrível.
Meme de Saint-Ange. Oh,, eu estava duvidando...
Dolmancé. Agora entendem porque eu tive de vos calar esta fantasia; e concebam neste exato momento que é preciso estar só e nas sombras para executar tamanha torpeza.
Eugénie. Deseja que vá convosco? Quer que eu o masturbe, enquanto o senhor goza com Agostino?
Dolmancé. Não, não. Isto se trata de um assunto de honra, e que se deve passar entre homens: uma mulher nos incomodaria... volto num instante, senhoras (. Sai, levando Agostino).

Certos exegetas fazem alusões a prováveis práticas coprófagas como o horror dos horrores. Oh, céus! Então, e as crianças; e os animais; e os freqüentadores do McDonald’s? e Mme de Saint-Ange, que periodicamente peida na boca de seu marido como se esta fosse a coisa mais natural do mundo? Então, e o pudico judeo-marxista-cristão Pasolini que, no círculo da merda de Saló, festeja o casamento da alegoria dantesca com a parábola sadiana com charmosos toletes de cocô bem retorcidos?
Como não é crível que o segredo seja desta natureza, assim como não é crível que seja de ordem filosófica, sendo de ordem evidente que em Sade a filosofia- atividade de não censura- deve tudo dizer, que espécie de coisa tão íntima poderia ser compartilhada com um jardineiro, mas não revelada a estranhos?

Uma outra pista, no final do quarto diálogo:

Dolmancé (...) eu desejaria que pudéssemos ter, em nossa casa, ou em nosso campo, um rapazinho bem robusto, que nos servisse de modelo, e para quem pudéssemos dar lições.
Saint-Ange. Tenho precisamente o que necessita.
Dolmancé. Não será por acaso um jovem jardineiro, de uma deliciosa figura, mais ou menos dezoito ou vinte anos, que vi há pouco trabalhando em seu jardim?
Saint-Ange. Agostino? Sim, Agostino, cujo membro possui treze de largura sobre 8 e meio de circunferência.
Dolmancé. Ah, céus! Que monstro! E isso goza?
Monteiro, tomando o lugar de Mademoiselle de Saint Ange. Oh, como uma cachoeira! Vou buscá-lo.
Sob os olhos dos presentes e por obra do acaso, havia um belo jardineiro cultivando suas flores...
O quadro possui um ar idílico. Romper o único tabu de Dolmancé vale a pena? Eu acho que vou manter o segredo.

Madame de Mistival. Sua devoção, ou mesmo sua beatitude, face ao Ser supremo e à bela e forte caridosa sociedade é bem conhecida por todos. Não é necessário insistir nisso. É verdade que seu marido a ultraja e sua filha a detesta. A razão de sua chegada é inequívoca: ela vem buscar Eugénie e, para sua infelicidade, encontra-a já instruída. Primeiro sinal inquietante: a desobediência da filha. Em seguida, o desencadeamento da fúria desta. A punição será cruel: condenada a viver, ela não poderá mais ser mãe. Pior que isso, ela não terá nenhuma outra atividade sexual, pois todos os caminhos não levam mais a Roma: eles lhe foram cuidadosamente interditos. Sua virtude está assegurada até o fim de seus dias.
Em uma palavra, e pra fechar a coisa: a filha prescreverá a leitura à sua mãe.
Resta a dizer que o realizador, sendo de natureza política, toma claramente o partido da vítima, como Sade: o que o interessa é mostrar a dor de uma mãe diante da perda de sua filha, e as humilhações e torturas de que é vítima.
Não sendo nós juízes, o que nos interessa aqui é mostrar a embriaguês e a incontrolável ferocidade dos instintos dos carrascos.
Mas a subversão que mais nos interessa aqui está na “despsicologização” dos personagens, que, em relação a um conjunto de elementos luminosos, musicais, espaciais, pensados em uma grandiosa escala, ocupa apenas um lugar secundário.
O personagem sadiano, como nota Pierre Frantz, “é uma máquina, uma maquinação; são lábios sem rosto, um discurso e uma voz sem origem senão a fictícia, quje não se constroem mas se esgotam na representação”. É por isso que Sade pode se contentar, para descrever uma emoção, com uma metáfora banal, e mesmo quando frequentemente ele dá a impressão de se ausentar do texto escrito, ele continua sendo uma vigilante presença no que concerne à direção de atores.
Sade, que escreveu a maioria de seus livros em Vincennes e na Bastilha, representa-se com extrema precisão as vozes, as entonações, as dicções. (...) é por meio de uma brusca aceleração de tom que ele nos faz sentir a ativa canalhice de um indivíduo. Sade sabe que não se trata de dar voz na cena a personagens tão criminosos quanto os que imagina em seus romances. Confundindo em uma mesma paixão seu gosto do teatro como arte do falso, triunfo ostensivo do artifício, e sua vontade em representar o vício, é por sua falsidade que em primeiro lugar se caracterizam seus personagens perversos. São impenitentes “enroladores”, que gozam com sua falsidade.(...)
Atitude rara à sua época, a paixão de Sade pelo teatro vai até o ponto de incluir a simpatia, ou até mesmo uma certa estima pelos atores. No romance Alline e Valcour, Léonore e Sainville percorrem o mundo inteiro para se encontrar. Como Justine e Juliette, Léonore só encontra maldade por todos os lados. Com duas exceções: um bando de ladrões e um de atores. Com os primeiros, aprende a dançar. Com os atores, seu métier de atriz. Ela possui qualidades para isso, sua beleza, por sua elegância, sua maneira de se movimentar. Mas teme se entregar a esta profissão por causa da péssima reputação dos atores ( na época excomungados, interditos de possuírem uma sepultura cristã). Seu interlocutor, M. de Brissac- ele faz no teatro os papéis dos pais nobres- a tranqüiliza.
Os atores formam uma sociedade à parte, mas que por isso mesmo se protege.
O ator, como o bandoleiro, sem adotar a lei comum, escapa à solidão do fora-da-lei.Sendo uma escola de talento, o teatro é também uma escola de sentimento: “Poucos sabem o que encontramos de delicadeza nas pessoas que possuem este talento. Eh!, como não deveriam ser honestos e sensíveis, em meados de suas vidas!”

Ao contrário de Rousseau, que vê no teatro uma escola de mentiras e um antro de corrupção, e de Diderot, que, no Paradoxos sobre o ator, distingue a emoção verdadeira da representada e preconiza um trabalho de distanciamento interior como condição indispensável do verdadeiro talento do ator, Sade- e nisto consiste, sem dúvida, uma das razões do caráter enigmático ou ambíguo de certos comportamentos seus- faz da emoção representada o germe da emoção verdadeira, da teatralidade a origem de uma verdade, ligada ao acaso, ao momento, à auto-sugestão, ou à cena que representamos unicamente para nós mesmos
”...
Eu bem que queria ficar aí, mas sou obrigado a algumas considerações sob o ponto de vista cinematográfico Como na ostra de Ponge, há, no interior da Filosofia na alcova, “todo um mundo a beber e a comer”: da improvisação mais espontânea ao rigor geométrico mais spinozista.
Não sei se podemos falar de emoções num estado impuro, mas me parece que há em Sade um número infinito de vocábulos que mereceriam uma reflexão bem maior, pois não possuem nada em comum com o uso que se lhes atribuímos hoje em dia. Por exemplo: paixão, crime, crise, energia, natureza, quimera, etc.

Se é fácil estar de acordo quanto ao fato de que não há em Sade nenhum vestígio de sentimentalismo ou sentimentos, me parece no entanto que nos é preciso conferir às emoções, contidas ou desenfreadas, um status antes orgânico, mais ligado às energias do corpo que aos élans da alma. Corremos talvez o risco de confundi-los com as sensações, mas um pobre cineasta será sempre inocentado, ao menos assim o espero, pela bondade da sociedade da qual é parte integrante. Como quer que seja, a emoção experimentada por qualquer um jamais toca a qualquer outro, como se esta curiosa forma de autismo portasse em si o estigma de uma irremediável prisão- a negação do Outro, implicando a negação de si.

Eugénie (...). Diga-me, eu vos suplico, com que olho o senhor olha o objeto que serve a vossos prazeres.

Dolmancé . Com um olho absolutamente nulo, minha querida; quer ele compartilhe ou não os meus gozos, quer ele experimente ou não contentamento, apatia ou mesmo dor; contanto que eu esteja feliz, o resto me é indiferente.

Mme de Mistival implora por piedade, antes de desmaiar ( “Mme de Saint-ange quer socorrê-la; Dolmancé se opõe”).

Eu sei de cor e salteado que a época do cinema físico passou; não estamos mais na idade de ouro do velho cinema americano ou soviético, mas vejo como poucas as possibilidades de sucesso deste projeto se os atores não se derem de corpo e alma, a fim de transmitir uma verdade física que suporta muito mal o engodo dramático, e tem por fim último uma metafísica do prazer.
A encarnação integral de um personagem sadiano não sendo possível, por condicionamentos de ordem social, moral, política, psíquica, etc, será pedido aos atores para que acumulem o máximo de energia e que sublimem as pulsões vitais que daí emanam.
No que me concerne, guardo intacta a esperança de arranjar deliciosamente as posturas, mais segundo meus gostos que segundo as práticas comuns.
Em não importa qual filme, há sempre, meu velho Epíteto, o que depende de nós e o que não nos concerne. É um pouco injusto, mas é assim, e um pouco de pragmatismo ( ou de neo, como diria o senhor ministro de posse do dossier) não faz mal a ninguém.
Resta a dizer que o fantasma do marquês está um pouco em todos os lugares: nas humanidades críticas e clínicas, nas jovens e vigorosas democracias, assim como nas velhas e obsoletas ditaduras; no bravo merceeiro de esquina, assim como no inspetor de polícia. Eu mesmo, cidadão acima de qualquer suspeita e acima de toda e qualquer vigilância, recebo cada vez mais visitas assíduas deste íncubo miserável. Nada de espantoso, então, que a espectral figura tenha chegado à literatura, às belas-artes, ao teatro...

Como poderia o cinema escapar a esta gigantesca contaminatio?
Salvo erro ou omissão, ele até mesmo nos permitiu ver uma obra-prima: Monsieur Verdoux.

Verde e doce, sem dúvida. 8
Este projeto de filme concebido por João César Monteiro em 1999 foi abandonado, em acordo com seu produtor, Paulo Branco.

Texto inicialmente publicado na revista Trafic, número 44, inverno de 2002.
Reproduzido na revista Dérives.
Traduzido por Luiz Soares Júnior.
Notas do tradutor
1. gênio no sentido de demônio interior: o daimon grego.
2. jogo aqui entre prescrire ( prescrever) e proscrir ( interditar, proscrever).
3. au vent. Ao acaso, fazendo associações. Que acaso?
4. Tomada de partido, em favor de.
5. O que comanda intelectualmente o jogo.
6. Übermensch. O super-homem nietzscheano, no sentido conotado por Monteiro aqui, não é o super homem no sentido da realização absoluta do homem ( metafísico, no caso), mas justamente o contrário: de seu ultrapassamento, de um novo homem. Justine ( Justine ou os infortúnios da virtude), o ideal de pureza, seria uma nova mulher, à semelhança de Juliette, sua irmã perversa, livre dos preconceitos e limitações da condição “devota”, mas a que preço!
7. ataraxia: o ideal epicurista da serenidade absoluta da alma, votada unicamente à contemplação.
8. Vert ( Verde) et doux ( doce) =Verdoux, num jogo de palavras.

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