quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Luz branca. Sobre o cinema de Jean-Claude Rousseau.

No primeiro plano do primeiro filme: o nome de um vilarejo sobre um mapa: Le Blanc. É uma direção a seguir para cada filme que virá, uma orientação a manter. É isto o que a jovem contempla pela janela, o imóvel branco diante dela; o cineasta solitário detrás de sua câmera ( primeiro super 8, depois digital), é isto o que ele olha, o branco, as coisas que retém a luz, o acontecimento sem limites e que, quando chega, se chegar, excede todo cadre: um para além da janela, para além do plano. Todas as janelas da obra de Jean-Claude Rousseau, e há muitas em seus filmes, contém esta tensão que se encaminha a este além, que podemos apenas indicar, mas nunca absolutamente nomear ( daí o fato de que a linguagem, de um filme a outro, se reduza a conversações de tropeço, insignificantes); todas nos orientam para o evento que chega, que acaba talvez por vir às custas do tempo, da duração. Assim, um dos mais belos planos de toda a obra é, em Keep in touch, aquele dos patinadores sombrios sobre a superfície branca do gelo: uma longa agitação do negro sobre “ O Branco”, um certo estado da presença e nada mais. Este é o caminho único e sempre recomeçado deste cineasta essencial. Um caminho aliás paradoxal, uma imobilidade de trajetória em geral, onde os quartos de hotel, uns após os outros, de Venise n’existe pas a Lettre à Roberto, valem como indicações de deslocamento. Deslocamo-nos, e agora esperamos. Este “esperamos” é, claro, o próprio cineasta, que se filma à vontade, com freqüência de costas, mas trata-se de qualquer um 1 também: um homem médio, indiferente, sem qualidades, um funcionário de si mesmo, ocupando este lugar ( ele mesmo) como uma profissão que se exerce, um dever, como uma folha que folheamos indiferentemente num magazine. Jean-Claude Rousseau continua uma certa linhagem de herói da “desaparição” 2, que olha pela janela, e assim vai: fora, há um mundo que, às vezes, por um milagre, é branco ou luminoso, e portanto eu escrevo ( eu filmo) que existe um mundo às vezes branco: esta é a razão de tantas folhas virgem que assombram seus filmes, estas extensões de neve em Keep in touch, estes pedaços de bobinas super 8 que constituem refrações claras no negro, este caderno vazio de Contretemps. E também estes planos inumeráveis e repetidos que filmam a passagem do tempo como uma pura aventura da luz. Isto quer dizer que o mundo para Rousseau, o mundo presente, carnal, real, não possui interesse ou sentido? Claro que não. O mundo real possui um sentido, justamente.
O mundo real também designa uma direção: daquilo que se ausenta, que buscamos invariável, infatigavelmente à janela. Desejo ou Eros são os nomes desta ausência, desta presença ainda a conquistar, a possuir. Desejo vem do latim desiderare, literalmente “cessar de ver o astro”. Cada filme de Rousseau é distendido em direção à janela como um empregado espera que as horas passem, uma mulher que os homens voltem, como um sentinela espreita as estrelas. Cada filme põe uma questão polimorfa: onde está o astro? Onde, tua voz ( a do destinatário epistolar, por exemplo, que La valée close não nos deixa ouvir)? Onde, teu corpo? Teu rosto? Onde está o teu rosto? Pois Rousseau não possui fascínio distinto do que entretinha Simone Weil; ele faz de seus filmes a experiência de uma vida radical, ou antes, a experiência radical de viver assombrado pelo interesse constante pela “graça”, ou seja, do dom incompreensível daquilo que nos falta. Os filmes dizem todos a mesma coisa, rondam sempre em torno desta mesma questão do lugar inencontrável. “Onde?” Sem dúvida, certos filmes ( Jeune femme à la fenêtre lisant une lettre ou Les Antiquittés de Rome) propõem antes uma resposta espacial: são homenagens à geometria e às formas abstratas, constroem uma localidade de linhas para a chegada do acontecimento ( eis o porque do mapa geográfico que abre a obra). Outros ( Vénise n’existe pas, Keep in touch, ou Juste avant l’orage) buscam antes a resposta no lento recolhimento da contemplação: barcos que passam sobre a laguna, variações da luz, lentidão de uma refeição, patas de pássaros pousadas sobre a neve: a questão “onde?” se experimenta agora no desafio de permanecer ali, a conservar sua coragem de permanecer.
É uma dicotomia um pouco especiosa, pois evidentemente existe tempo no espaço e inversamente, mas enfim, é uma forma cômoda de traçar as linhas de tensão dos filmes, de classificá-los segundo certas lógicas de construção.
Depois chega Clément, o bem nomeado. Clément é o herói de um dos últimos filmes ( uma outra maravilha) de Rousseau: Faibles amusements. Ele encarna, pela primeira vez, o nome, o rosto e o corpo do desejo. Embora o filme conserve uma certa ambigüidade voluntária ( o cineasta e o herói compartilham o mesmo quarto, o mesmo leito?), fica claro, no entanto, em um plano magnífico, que eles não compartilham o mesmo olhar: um ( Rousseau), sempre postado em sua invariável janela, à espera do que ele se priva de ver; o outro ( Clément), do lado de fora, no balcão, tão longe, tão próximo. Esta irrupção de um rosto preciso muda portanto o caráter do dom, mas não cura a ausência.
Certo, temos um avanço, um passo para, e Faibles amusements é o primeiro filme onde Rousseau filma seu próprio corpo em deslocamento ( no caso, num barco), ao invés de filmar de costas os signos do deslocamento- carro, caminho, barco, hotel, etc. Um passo, portanto, foi dado: a graça tornou-se palpável: e daí? é preciso ainda saltar através da janela, é preciso ainda saltar.
Stéphane Bouquet, junho 2005.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. No texto original: On, c’est le cinéaste certes (...) mais c’est “on” aussi bien. On é um pronome de indeterminação em francês que se refere ( ou refere) a qualquer ( um?), a nenhuma pessoa ( pronominal) em específico. Rousseau filma Rousseau, mas o filma como alguém que pertence ao horizonte indeterminado, movediço e nebuloso do on: como um qualquer.
2. effacement: apagamento ( de traço), desaparecimento, desaparição

Vigília fúnebre: O funeral, de Abel Ferrara



Ao longo de filmes que se sucedem em uma cadência cada vez mais desenfreada, Abel Ferrara acabou por traçar um território quase autônomo, uma sorte de primado no interior do qual ele parece ter encontrado hoje uma liberdade e uma flexibilidade absolutas. Se este caminho aponta para a Europa, único território onde seus filmes são realmente vistos e levados em consideração, este não é menos solidamente ligado ao cinema americano. Com The funeral, Ferra assina um grande filme crepuscular em torno da Máfia, cujas peças chaes já nos foram dadas por obras maiores como as de Coppola ( O poderoso chefão), Leone ( Era uma vez na América) e De Palma ( Os intocáveis). O que de saída singulariza The funeral em relação a seus ilustres predecessores é sua secura, sua brevidade ( 1h39), ali onde Leone, Coppola e De Palma tinham optado por uma forma bem mais ampla e sinfônica. O funeral é antes uma sonata; a narrativa se concentra sobre uma única noite ( o tempo de um velório), a forma é de uma grande concisão ( planos médios, muito próximos aos corpos, curtas focais e muito pouca profundidade). O filme não restitui um mundo, mas antes o movimento de uma ação, captada de forma bem concentrada, o mais próximo possível de seu centro energético. Este movimento é o que conduzirá ao apocalipse de uma família, da primeira morte ao genocídio coletivo, durante os anos 30, no meio da Máfia.


A grande força de Ferra como cineasta consiste em saber controlar as “pequenas formas” e de manter uma vivacidade própria ao filme B. De fato, podemos distinguir hoje dois Ferrara: o cineasta americano saído do cinema de gênero, de um grande rigor formal, que trata sua matéria de forma sempre frontal e incisiva, e um Ferrara-autor, cuja tendência autorista apareceu de forma cada vez mais clara deste O rei de Nova York, culminou com Olhos de serpente e parece bem precisamente ligada ao autor ( de seus roteiros): Nicholas St. John. Este Ferrara, metafísico de uma religiosidade atormentada, cujas narrativas se aparentam a alegorias, é cada vez mais identificável, como se os últimos filmes do cineasta explicassem mais claramente o conteúdo mais informal e iconoclasta dos primeiros ( rever o incrível Mrs. 45, anjo da vingança). Mas esta inflação do significado é sempre suportada por uma mise en scéne concreta, uma energia de cineasta que filma tudo como se pertencesse à matéria viva, incendiária, inclusive a palavra, em seus transbordamentos “logorréicos” ( The addiction, onde longas digressões filosóficas não valem por seu sentido, mas por sua capacidade em se propagar, como em um dripping). O que interessa em O funeral é, portanto, menos seu conteúdo explícito- o esboço de uma reflexão sobre o bem e o mal, sobre a responsabilidade ( o personagem de Christopher Walken é confrontado a uma série de “casos de consciência”), o retrato de uma América tomada entre o poder subterrâneo da América e o contra-poder em expansão do comunismo ( paralelo que, é preciso dizer, logo cai por terra)- que a forma pela qual tudo isto se encarna na tela. Pois mesmo se se fala cada vez mais nos filmes de Ferrara, seu cinema no fundo permanece muito pouco discursivo. As demonstrações são sempre incoerentes, inacabadas, transbordadas por uma energia insensata, a dos fluxos de violência e dos processos de destruição, único verdadeiro centro palpitante de seus filmes.


O filme é verdadeiramente fundado sobre o princípio da cena. Cada cena é quase tratada como uma totalidade, e reproduz um mesmo tema: o do crescendo. Os personagens aparecem, começam a se falar de forma bem civilizada, depois a interlocução se degenera e chega a um confronto quase físico. Repetindo este princípio ao longo de todo o filme, Ferrara demonstra muita invenção. A briga entre os dois irmãos ( Chris Penn e Vincent Gallo) em plena noite, parasitada pela intervenção da esposa, que se mistura ao bate-boca ( Isabela Rossellini), impressiona pela virtuosidade de que faz prova Ferrara ao fazer circular seus atores em um plano-sequência, a fazê-los entrar e sair do campo, que evoca a filmagem de um match de boxe filmado ao vivo, no qual o árbitro também levaria socos. Mais adiante, uma outra cena de conflito impressiona, ao contrário, pelo minimalismo de sua filmagem. Chez ( Chris Penn) entra em casa, ordena a sua mulher ( sempre la Rossellini, bem maltratada pelo filme) que ela tire a roupa para transar com ele, mas finalmente explode em soluços e se desalinha em palavras de expiação. Toda a seqüência é filmada sobre o rosto de Isabela Rossellini, primeiro captada em sua expressão de terror, face contrita de vítima sacrificial que pouco a pouco se torna o rosto de uma mãe consoladora, que dispensa apaziguamento ( uma espécie de Virgem com a criança). O melhor do filme está na forma em produzir clímax, e os clímax coincidem sempre com a emergência de uma força primitiva que ultrapassa os personagens, uma força quase animal. Já era o caso em The addiction, quando os convidados de um encontro universitário se metamorfoseavam em uma horda de bichos ululantes, avançando sobre os outros convivas para os sangrar, ou em Body snatchers, quando a aparência humana dos extra-terrestres era destruída sob o impulso de um grito monstruoso que lhes deformava o rosto. Este grito é aquele lançado pelo irmão mais bruto (sempre Chris Penn, absolutamente formidável), quando descobre o cadáver de seu irmão e urra de dor, um grito inumano, que entra em discórdia com a ordenação cuidadosamente ritualizada do funeral ( as flores dispostas, o irmão mais velho, que organiza tudo como um metteur en scéne, as lágrimas bem teatrais das mulheres, postas em cena como um coro de carpideiras). Este grito, ou quase o mesmo grito, nós ouviremos de novo mais tarde, quando Ghouly dorme com uma prostituta. No momento do orgasmo, ele lança um grito amplamente mais violento do que estamos acostumados a ouvir nas cenas de sexo no cinema ( inclusive o cinema pornô, onde o orgasmo é com freqüência sussurrado), o que leva sua amiga a comentar “Realmente, tu não passas de um porco”. Nestes momentos, quando o homem torna-se novamente, em uma fulminação, um animal, tocamos no nervo central do cinema de Ferrara. Aí também o filme lança a descarga de uma energia bruta, espasmódica, irredutível a todo discurso, e cujas chamas de glosa religioso-metafísica que vicejam aqui e ali não conseguem esgotar.


O perigo de um cinema fundado sobre a fulguração e o clímax é, evidentemente, ter dificuldade em manter uma narrativa. De fato, Ferrara não é um grande contador de histórias. As articulações de suas narrativas são sempre frágeis. Este “relaxamento” narrativo já produziu formas fortes ( a indolência errática de Bad lieutenant). Aqui, o classicismo formal do filme, sua referência esmagadora ao teatro trágico ( todas as ações se voltam para um único lugar- o quarto do morto, todos os flash-backs se articulam em torno de uma unidade de tempo- a duração do velório) nos faz lamentar certas fraquezas da narrativa ( Christopher Walken desmascarando o assassino de seu irmão é certamente algo “feito nas coxas”, certas pistas narrativas são deixadas no meio do caminho...). Mas em seus momentos mais inspirados, O funeral consegue “contar” de forma freqüentemente a não se apoiar nas muletas da narração clássica. As cenas finais, por exemplo, se encadeiam como que ao apelo da inspiração, um plano suscitando outro segundo uma lógica puramente poética. Tiros circulam de um flash-back a outro; passamos de forma abrupta da execução do criminoso por Ray ao seu enterro por Chez, sem nenhuma ligação. Em duas panorâmicas, passamos da terra onde é enterrada sumariamente a vítima de Ray ao céu, depois do céu à casa da família. Aberto em uma sala obscura ( de cinema) onde se projeta um filme noir ( com Humphrey Bogart), o filme trama uma tessitura de trevas que conduz à tela negra final, onde o espectador compartilha o ponto de vista do cadáver sobre o qual se fecha o túmulo. A fotografia de Ken Kelsch ( a quem se deve o belo preto e branco de The addiction) nos dá admiravelmente esta sensação de um mundo encoberto pela noite e pelas sombras, como se o filme inteiro portasse luto. Nesta evocação das forças invisíveis que circulam de forma subterrânea, a energia do cinema de Ferrara encontra seu regime de expressão ideal. Se a cena de violência final é tão impressionante, é justamente por advir como uma erupção, sem ter sido preparada de antemão, como se tomasse o filme de assalto. É esta tendência ao happening que dá todo o valor ao cinema de Ferrara, e particularmente a O funeral. Então, mesmo que sua temática pessoal se torne quase identificável em demasia, Ferra consegue sempre surpreender seu espectador, lançando-lhe upercuts que o deixam KO.1
Jean-Marc Lalanne, Cahiers 508
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. KO: Em artes marciais, seria o nocaute.

O coração é um caçador solitário: O cinema de Gérard Blain.

Para analisar o cinema de Blain, é preciso partir do que, deixando sempre o espectador em seu lugar, se impõem à primeira vista em seu cinema as grandes oposições que estruturam uma obra de uma coerência extrema de estilo e tema: amigo/inimigo, proprietário/possuído, aquele que olha/aquele que é olhado, marginalidade/norma. É preciso falarmos antes de tudo do signo distintivo fundamental deste cinema, a frontalidade, imperativo estilístico herdado por Blain de seu mestre Robert Bresson, e ao qual todos os seus filmes se curvam: Les amis ( 1971), Le Pélican ( 1973), Um enfant dans la foule ( 1976), Um second souffle ( 1977), Le rebelle ( 1980), Pierre et Djemila ( 1986), Jusqu’au bout de la nuit ( 1995). A frontalidade exprime simultaneamente um duplo movimento, de ataque e de retração face ao mundo. Por um lado a vontade, raramente dita mas claramente mostrada, de atacar ( de olhar face a face, de lhe penetrar), e por outro o cuidado prudente de impor a si mesmo uma distância de segurança, um limiar a não ser ultrapassado. O mundo se deixa apreender antes de tudo pelo olhar, este às vezes fazendo-se contemplativo, na justa medida da distância que nos separa do mundo. Quer seja um revoltado ( Le rebelle, Jusqu’au bout), ou que, ao contrário, tente se deixar passar desapercebido ( Pierre et Djemila, Um enfant dans la foule), trata-se sempre para o herói ( a palavra é mal colocada, mas é a única a nossa disposição) de Blain de sobreviver- sempre mantendo a instável esperança de um repouso por-vir. Sobreviver, pois a frontalidade ( e, simultaneamente, o recurso a uma focal única) exclui absolutamente toda profundidade, ou seja, toda possibilidade de penetrar o mundo e de nele se fundir. Nenhuma profundidade de campo ( e, consequentemente, nenhum travelling- advindo com o fito de atravessar e explorar esta profundidade), nenhuma profundidade dos seres no cinema de Blain: tudo se dá tal como é, em sua opacidade nativa e acompanhado de uma espécie de “tomar ou largar” que interdita de pronto toda réplica. É preciso escutarmos a confissão, informulada e fundadora de toda obra, de que o mundo é um monolito postado contra o indivíduo e que lhe é impossível abrir a menor brecha.
Pode-se dizer isso de uma outra maneira: o indivíduo está engajado em uma relação de não-reciprocidade absoluta com tudo o que o circunda. Ele exige ( Le Pélican: viver com seu filho; Le Rebelle: manter junto a si sua irmã pequenina), mas a sociedade permanece surda; daí, em Blain, uma política inflexível do campo, do contracampo e do fora de campo. Um olhar, aquele que um pai dirige a um filho por exemplo, é uma solicitação; ora, salvo em ocasiões bem raras, e sempre em uma relação direta ao cinema de Bresson, este olhar só atinge seu fito para além dos “remendos” que separam dois planos. Apenas indiretamente este obtém a resposta solicitada. Neste sentido, o início de Jusqu’au bout de la nuit é exemplar: François ( o próprio Blain), há pouco saído da prisão, contempla através da janela do apartamento de sua mãe e só vê um muro cinzento e opaco. Todo O pelicano, sem dúvida o mais belo filme de Blain, é aliás construído sobre este mesmo princípio de não-reciprocidade e sobre esta impossibilidade de criar um espaço ( um plano) onde os olhares possam coabitar. Um pai ( sempre Blain), ao qual foi recusada a guarda de um filho, observa cada dia, dissimulado atrás de um muro, este brincar no jardim de uma luxuosa casa suíça. Podemos mensurar evidentemente o quanto esta concepção de um cinema bidimensional- bloco contra bloco- pode ser esquemática: é verdade que a obra de Blain, organizada em torno de imperativos ( a frontalidade é um destes, a elipse outro) e de recusas, é com freqüência paralisada por sua obstinação em aplicar de forma estrita os ensinamentos de Bresson e que, por exemplo, a interpretação dos atores ( mais desajeitada que bressoniana) possa ressentir-se dolorosamente disto, em particular nos últimos filmes. Os olhos sempre colocados no mesmo objetivo, Blain esposa de forma tão total o olhar de seus heróis, e se lixa tão majestosamente para o ponto de vista adverso, que finalmente ele acaba por estabelecer a seguinte equação: o inimigo é tudo aquilo que está no fora de campo, este tornando-se a ameaça absoluta. É um fato que um tal cinema obedece a uma lógica paranóica e que é demasiado limitado ( em todos os sentidos do termo) para possuir uma verdadeira amplidão. Por este motivo, teríamos todas as razões para nos desinteressarmos.

Nós somos contemporâneos de uma derrota essencial, um mundo onde os papéis estão definitivamente distribuídos, onde os campos estão fixados- possuidores contra possuídos, norma contra margem. Uma expressão, aliás, volta com freqüência na boca de um personagem: é tarde demais. Neste caso, tratar-se-ia de complacência ou pessimismo convencional da parte de Blain se alguma coisa, em seus filmes, não tivesse a função de indicar a existência de uma cena primitiva que vai estabelecer esta ordem de coisas. Esta cena- a partida do pai-, nós a encontramos em Um enfant dans la foule. A história pessoal de Blain, que serve de matéria primeira a seus quatro primeiros filmes, deve ser posta em relação com o cadre mais amplo no qual esta encontra um lugar. Nesta perspectiva, podemos pensar que esta não-reciprocidade da relação ao mundo encontra sua origem na relação de Blain com sua mãe, tal como ela nos é mostrada em Un enfant, onde é frequentemente filmada de costas. O pai ausente, a mãe que vira as costas, estes são os grandes pilares deste cinema, eis o porque dos personagens procurarem um pai substituto ( Les amis, Um enfant dans la foule), eis o porque das mulheres serem tão maltratadas ( Um second souffle, Um enfant dans la foule). Não se trata aqui de julgar ou extrapolar o sentido de sua obra a partir da biografia de Blain, mas simplesmente de ver a partir de que seus filmes, pouco ricos em matéria de explicações, procedem, qual o seu ponto de partida.
Posto isto, o ódio ao espetáculo, sob todas as suas formas, é um dos principais motores da obra de Blain. Para irmos direto ao ponto, digamos que encontramos três objetos prioritários de ódio, três faces diferentes da obscenidade do sistema capitalista: o corpo burguês, o dinheiro, o discurso. Robert Stack em Um second souffle, Michel Subor em Le Rebelle, o patrão de Jusqu’au bout de la nuit: Blain adora os anjos mas contempla o corpo burguês como uma máquina gélida, friamente alimentada, polida, acariciada e oferecida aos olhares que a consomem. Sobre Le second souffle, um filme inteiramente consagrado ao corpo ( o corpo de um médico de 60 anos, interpretado por Stack), ao corpo que se contempla envelhecer e antecipando o luto de sua boa saúde, Bernard Boland (Cahiers número 294) notava justamente em Blain esta “aderência do social e do sexual, instituída em uma norma”. Basta vermos o próprio cineasta, observar em Jusqu’au bout este rosto que dir-se-ia pintado por Bacon para compreender o quanto ele tem horror a esta ilusão do corpo-máquina, orgulhosamente adestrado e oposto como uma fortaleza contra o tempo. Da mesma forma, o dinheiro é obrigatoriamente espetáculo: está em sua natureza determinar àqueles que não o possuem um único lugar, o lugar do espectador impotente. O jardim onde se diverte o rapazinho de Le pélican ( o magnífico César Chauveau, anjo e ator fetiche de Blain, cujo sorriso chega a esgarçar o “envelope” bressoniano que lhe é imposto) é um teatro, uma cena onde se exibe, ao longo do dia, sobretudo através dos ritornellos 1 lançados incansavelmente pela mãe- A vida é bela, bela, bela- a vulgaridade auto-satisfeita do mundo do dinheiro, onde de agora em diante vive a criança. Jusqu’au bout de la nuit: preso como refém, um grande industrial de Lyon, filmado por um camescope empunhado por Paul Blain, deve tentar convencer seu filho a pagar o resgate: nenhuma indicação lhe foi dada, mas o pai, em grandes frases elegantemente torneadas, com uma sutil tremedeira na voz, declara que será assassinado se seu filho não pagar, o que é falso. Temos aí um dos momentos mais miraculosos do cinema de Blain. Com uma inultrapassável simplicidade, tudo é dito, e em primeiro lugar a tendência natural do capitalismo a dar, em matéria de espetáculo, sempre mais do que lhe é pedido. Quando entra no riquíssimo apartamento do novo marido de sua esposa, Blain, em Le pélicain, não tem outra possibilidade além de querer destruir tudo, de se esgotar , ao querer fazer cessar o eterno e insuportável espetáculo da riqueza.
O que constitui um grande problema é a condenação prévia de toda forma de discurso, mesmo que pouco articulado. Há em Blain a idéia de um homem originário, que viveria para aquém de toda tomada de palavra, ou mesmo para aquém de toda consciência( como a criança na multidão), na silenciosa harmonia de uma relação aos outros jamais explicitada. Seu cinema não aceita nem a negociação nem o “concerto” dos discursos ou vozes, e se define inteiramente contra, através da consciência, com um sentido reconfortante, de que um indestrutível inimigo o acossa. Escutar o inimigo seria torná-lo mais próximo, fazê-lo penetrar em nós, e isto, no interior do sistema formal monolítico de Blain, é simplesmente impossível.
Na rota deste caminho que conduz irresistivelmente ao fracasso- a idéia de um destino trágico é bem presente aqui-, restam, apesar de tudo, alguns instantes de consolação, a possibilidade efêmera de tornar palpável sua presença no mundo. O que é notável é que esta possibilidade passa antes de tudo pelo som e pela seleção dos ruídos, que estão em ligação direta com o fluxo do tempo. O som vale antes de tudo como pegada carnal do presente, o que explica o grande número de ruídos com um caráter rítmico- passos, ondas, sinos, cavalos... Nestes momentos, trata-se de fazer sua a respiração do mundo- da natureza, não da sociedade. Apenas os deslocamentos laterais e horizontais, que figuram fluxos ( estes abundam na obra de Blain) permitem ao homem deslizar contra o mundo e deixam entrever a eventualidade de um futuro reconciliado. Então, por alguns instantes, parece possível, tanto para os personagens quanto para os espectadores, de se deixar carregar pelo apaziguado rio da existência.

Emmanuel Burdeau

Cahiers du cinéma 508
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. Ritornello: um mantra ou jingle, melodia repetida interminavelmente.