terça-feira, 9 de março de 2010

Le plus-de-voir História(s) do cinema por Alain Badiou

De que se trata? Falando de seu afresco, que ele chama de emissões, e que nomeamos como o “filme”, Godard monta a ficção de um arquivista, evoca Foucault, situa seu empreendimento entre História e Idéia. Mas esta não é uma intenção derivada, uma espécie de estrato suplementar, que se poderia integrar a tudo o que se profere a partir, ou em torno, do homem com cigarro na boca e iluminado por uma fluorescente ( grande artista-sábio, sob o ícone de Groucho Marx), homem este cujo retorno, com o clicar das teclas de sua máquina de escrever, assinala , no “filme”, que todo este terror visual intitulado História (s) do Cinema é a biografia intelectual de um único homem?

Ou ainda: a definição abstrata do cinema constitui o cruzamento entre uma imagem-movimento e um real. É por meio deste cruzamento que o “filme” edifica sua matéria, pelos artifícios maiores da montagem virtuose, da superposição de imagens, do intervalo brusco entre o audível e o visível, do murmúrio que, para além das máximas, não cessa de se fazer ouvir, como se toda verdade tivesse de ser laboriosamente extirpada de um ruído de fundo compósito? Mas grandes conglomerados maciços textuais, a imagem que pára sobre o rosto angelical de uma cartomante, tudo isto é um obstáculo a esta idéia de um constante descruzamento e recruzamento ( dobrar e redobrar, diria Deleuze) que só teria por objetivo ruminar a inalcançável justiça das imagens, ou sua notória injustiça. Ao invés disso, vemos surgir a cesura entre um artista exageradamente solitário e este enorme buraco negro do século que teve por nome “Segunda Guerra Mundial”.
Ou ainda: se disse que o tema de Godard era a genealogia da potência do cinema. Mas da mesma forma não é a sua “impotência” que está em questão? O impossível a se filmar assombra Godard desde sempre; a fábrica, o sexo, o extermínio. De maneira que este imenso palimpsesto, o “filme”, visaria a identificar, através dos recursos acumulados da super-potência ( podemos fazer, deste conglomerado de imagens e de sons, o que quisermos), o ponto de impotência que é, ao fim e ao cabo, todo o real do cinema, e a razão última de sua dissipação. Daí também o status ambíguo dos livros, que no “filme” Godard tira de sua biblioteca, cujos títulos ele cita, ou fragmentos. Ao mesmo tempo o conglomerado da potência ( ou poder) incorpora os livros, os manobra, os inscreve em sua polifonia, e por aqui e ali subordina sua força à força de que o cinema é capaz- tanto por sua amplidão de recepção ( no cinema, conta-se por milhões, no livro por milhares) quanto pela gravidade real da montagem das ficções ( l’Espoir, o filme, contra l’Espoir, o livro 1); ao mesmo tempo, ele sugere que os livros permanecem “em reserva”, que sua visibilidade é apenas aparente, e que esta disponibilidade em retração do escrito talvez monte, em relação ao real, uma guarda mais segura do que a garantida pelas imagens.

Ou ainda: uma totalização sinfônica. Uma “restituição integral do passado”, não pelos meios de sua citação ou narração, mas por aqueles, combinados, de uma desarticulação temática ( como o cinema cruza o caminho da guerra, do amor, a beleza das mulheres, as revoluções, os massacres, as mitologias, as nações...?) e de uma contração local, que reúne em um único ponto todas as interpretações disponíveis. Daí um procedimento de composição que se poderia com justiça comparar ao de Mallarmé em Un coup de dés. Alguns enunciados maiores, com freqüência apresentados na tela em letras maiúsculas ( HISTÓRIAS DO CINEMA, FATAL BELEZA, VOCÊS NÃO VIRAM NADA, UMA ONDA NOVA, etc), induzem a subtextos, escoltados por um rumor quase inaudível, ou metamorfoseados por motivos musicais, enquanto que as citações fílmicas são tratadas como suportes de variações infinitas, por coloração, câmera lenta, superposições de imagens, retrocedimento de imagens ( marche en arrière), cortes, incisões disparatadas, recorrências, delimitações, círculos, mutilações visíveis. Aliás, construções secundárias funcionam não “abaixo”dos enunciados cruciais, mas ao lado, como fortificações nuas. Isto se dá particularmente no caso dos títulos dos filmes, que tecem pouco a pouco, à parte de todo o resto, a lista nominal, impávida, inalterável, do que permanece.
Mas podemos também rever o “filme” a partir do que constitui exceção a este tratamento emaranhado, ou o escalonamento simultâneo do múltiplo visível e audível conduzido à superfície, como o oceano faz com o barco; não apenas a organização semântica do “filme”, mas o conjunto das associações, virtualmente infinitas, que um pensamento a todo instante móbil e vigilante descobre na menor afirmação, e que simbolizam, no próprio nível dos enunciados fundamentais, as tentativas combinatórias sobre as letras ou as palavras ( assim, a passagem de NOUVELLE VAGUE a UNE VAGUE NOUVELLE, ou a injunção subjetiva TOI tirada da palavra HIS( TOI) RE, sem contar as brincadeiras do tipo SI JE NE MABUSE, e vários outros anagramas). Exceção: o doce terror de uma seqüência de O mensageiro do diabo 2, a das crianças na barca, que deixam repousar sobre o rio noturno sem alteração nem corte. Ou o retorno calculado da seqüência da metralhadora em Esperança. Ou determinado momento de palavra nua carregado por um rosto. Ou determinada insistência musical, espécie de graça de uma lentidão advinda ao tohu-bohu do visível. Ou mesmo a inserção fugaz de uma cena pornográfica, cuja feiúra brutal se distingue como uma mancha sobre a seda. E nos dizemos então que a extrema percuciência da montagem, que faz do “filme” o equivalente de uma conversação multiforme agenciada por um Deus, só está lá para que sejamos levados a desejar sua suspensão, como quando buscamos no mundo devastado os signos esparsos, e quase imperceptíveis, de uma paz superior.
Ou ainda: sustentar o desafio desta outra arte do visível, a pintura. São incontáveis os momentos no “filme” em que um rosto da Renascença vem espraiar sua cor nas margens de uma seqüência, ou detrás de um fotograma em preto e branco. E aqui trata-se da mesma ambigüidade relacionada ao livro. É preciso compreender- o que é sempre designado pela abertura da imagem cinematográfica em direção ao esplendor pictórico, como se este lhe fosse subjacente-, que o cinema continua a refletir, nisso fiel à pintura, as bodas conflituosas entre a selvageria da história e a evidência corporal do amor? Uma outra técnica mostra-se mais incerta, a que organiza o entrechoque extremamente rápido, quase doloroso, entre uma imagem de cinema e um fragmento de pintura. Poder-se-ia quase ver que o cinema, ao invés do herdeiro, seria antes o suplício da pintura. A expressão de Malraux, “a Moeda do Absoluto”, é um dos sintagmas cruciais do “filme”. Mas às vezes nos perguntamos se “moeda”, em se tratando do cinema, não é um termo tão mais importante que “Absoluto”, a ponto de que, para termos um equivalente em película a qualquer Adão e Eva de Michelangelo, seria necessária a poeira acumulada por todos os rostos amantes de toda a breve história do cinema.
Ou ainda: a melancolia. Ela seria o verdadeiro tema de todo o “filme”. Sabemos em demasia que o estilo de Godard, ao encurralar os outros e a si mesmo contra o muro, obrigando-os à confissão de suas doentias incertezas, captando o fluxo mortal dos atos, ou exibindo- no contraste entre sentenças definitivas ( seu lado moralista francês, Chamfort, La Rochefoucauld) e a pobreza tocada pela graça da paisagem plana, ou da mesa de ferro branco, o pouco de fé que ele se pode reservar a seus próprios impulsos- é materialmente melancólico. No "filme", esta melancolia é complexa. O cinema é seu suporte privilegiado, aquele que apenas em aparência é a arte de seu tempo.Um enunciado do "filme" é: " O cinema, arte do século 19, carregou o século 20" ( a porté le 20e). Melancolia advinda da constatação de que sempre seja tarde demais, até porque o cinema, sem dúvida, está morto, como o sugere a inscrição, quase terminal: " ERA O CINEMA". O "filme" diz também: "Podemos fazer tudo, com exceção da história do que fazemos". De maneira que esta "história(s) do cinema" , ou é impossível, ou atesta que aquilo de que é testemunha, o "fazer" do cinema, é de hoje em diante forclos ( barrado, interdito). Godard, testemunha melancólica de uma certa abolição de seu próprio "fazer artístico"? Contribuiria para isto que a "vague nouvelle" ( nova onda, nova moda), cujo terno emblema é a imagem de Truffaut, seja designada como uma espécie de "paraíso perdido" onde, guiados por Langlois ( ou seja, já guiados pelas histórias do cinema), os jovens arrancavam uma arte à sua lenda acadêmica mortífera para expô-la às intempéries do "lado de Fora" ( ressources du Dehors).
Mas também este paraíso, a ser visado segundo o monumento real da História, estava envenenado, diz-nos Godard, pois pleno, até o limite de suas bordas, das “ilusões perdidas”, da dor das revoluções, o obscuro comunismo, e finalmente o misto irrepresentável ( ao qual Godard faz, em meu ponto de vista, demasiadas concessões à la mode) dos tiranos simétricos, Hitler e Stalin. De maneira que a melancolia se volta contra nós. Pois no poder de exprimir o que foi abolido, na abertura polifônica do dossier completo do que se manteve interdito, no zelo empregado em complicar até o infinito ( estilo barroco, à la Leibniz, as mônadas do cinema) as “dobras e rebordos” da imagem e do real, na desmistificação do que toda impostura carrega consigo de verdade, o artista desvela uma outra época, mesmo que ele não saiba de que época se trata. Um pouco como na caso da saturação retrospectiva, igualmente marcada por um inimitável tom melancólico, das sinfonias de Mahler, opera sem o saber a redefinição de Schoenberg. O rosto fechado de Godard sob a lâmpada, que não é sem relação à máscara de Mahler, é o rosto de um arqueólogo virtuose e triste? Ou aquele de um homem que habita, com toda a sisudez puritana da Suíça, a mais essencial coragem, a coragem de vencer a melancolia com suas próprias armas, investindo-a com o tom e o estilo de uma promessa criptografada?
Ou ainda: o platonismo anárquico de Godard. É marcante que “no filme” toda imagem seja o índex possível de uma outra imagem, e ao mesmo tempo o estofo de vários textos simultâneos. A imagem jamais se refere a um referente, todo o mimetismo é excluído. A imagem é antes a rachadura entre ela mesma e todo o povo que habita no visível e no dizer. O “filme” é o movimento destas “rachaduras” ( écarts) superpostas, entrelaçadas. O cinema tem por vocação, pronunciar-se, ligar, pôr em relação, o que usualmente não mantém relação, precisamente pois ao cinema é dado aproximar, engendrar consonâncias, tramar polifonicamente, pelo próprio meio de uma separação ( écart). Assim, os Judeus e os Árabes ( ISRAEL E ISMAEL, intitula “o filme”), ou Judeus e Alemães em uma única imagem, separada de si mesma: dois jovens soldados alemães carregam o cadáver de um deportado. Mas então, a questão se torna: qual é a essência da imagem, se ela não reproduz nada, mas se distancia sinteticamente de todas as outras, em proveito de uma invisível justiça do visível? No fundo, a organização serial do “filme”, sua esmagadora sutileza no detalhe, sua mobilidade tática, compõem os meios de uma retomada da essência, a respeito da qual alguns planos suspensos ( uma mancha azul no negro, um rosto de mulher lentamente deslocado, uma casa cujas janelas se fecham...) destilam o símbolo, e cujos constantes recursos às inscrições abstratas são como os sinais indicativos, ou os resumos que um Sócrates convertido à essencialidade da imagem forneceria a seus jovens auditores, a quem tanta aparente sofística confundem.
Obra-prima, sim, no sentido artesanal do termo: realizada e completa, solitária, vagamente maníaca, tramando diversas perspectivas, sem hierarquia estabelecida.
Objeções? Sim, claro. Um certo peso, uma seriedade excessiva, nas bordas da ênfase, bem assinalada no “filme” pela voz claudeliana de Alain Cuny. O cinema é convocado diante do tribunal de sua responsabilidade histórica e de sua fatalidade artística. Isto significa render-lhe justiça? Esta arte impura é a arte do sábado à noite, da família que sai pra se divertir, dos adolescentes, dos gatos que se aninham sobre os muros. O cinema oscila desde sempre entre o burlesco de cabaret e o titânico da feira. Ao mesmo tempo o palhaço e o “homem mais forte do mundo”. Não seria necessário lhe dar o crédito de que ele é, sobretudo, inocente? Como tudo o que fascina e reúne, ele foi propagandista, é claro,e publicitário e estúpido. E fugidiamente incapaz, por uma espécie de depuração interna de seus materiais indignos, da mais elevada destinação. Seria preciso, em relação ao “filme”, onde como sempre em Godard se impõe a questão deletéria da Salvação- o amor contra o Estado, a responsabilidade do visível contra os cães exaustos da “comunicação”, o texto duro contra a imagem deliqüescente, etc...- uma contra-história rarefeita, onde se veria que não é preciso fazer, sobre o cinema, tantas história(s). Tão grande quanto seja, e tão imbricado em nossa época, ele se enraíza sempre, esta arte da “comunhão” geral ( rassemblement general), no gosto compartilhado por todas as classes, de todas as idades e de todas as ações, pelo espetáculo de um homem poderoso que um vagabundo asperge de estrume, de um imenso navio que flutua, de um monstro horroroso surgido das entranhas da terra, do Bom que, em plena luz do Sol, depois de tantos desapontamentos, enfim mata o Mau, do policial-detetive que agarra o ladrão-mafioso, dos estranhos costumes dos estrangeiros, e de cavalos na planície, e de guerreiros fraternais, e do drama sentimental, e da mulher nua estilhaçada pelo Amor. Os maiores artistas desta arte, Chaplin, ou Murnau, apenas corresponderam 3 a esta origem vulgar, sem jamais- muito pelo contrário- tentar aboli-la.
Se o cinema é idéia, visitação casual da idéia, é no sentido em que o velho Parmênides, em Platão, exige do jovem Sócrates que ele admita, ao lado do Bem, do Justo, do Verdadeiro, das idéias absolutamente ideais, algumas outras menos convencionais: a idéia do Cabelo, ou a da Lama.
Alain Badiou, ( Le plus-de-voir) Art press, O século de Jean-Luc Godard, novembro 1998
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Notas:

1. L’Espoir ( A esperança), romance de André Malraux, aparecido em 1937, que evoca as primeiras lutas da guerra civil espanhola, onde Malraux foi chefe de esquadrilha da aviação estrangeira que foi para a Espanha, a fim de lutar pelo regime republicano. Esperança foi filmado por Malraux, com o apoio do governo republicano; a filmagem, começada em Barcelona em 1938, foi interrompida pelo avanço das tropas franquistas do General Yague. Malraux só terminou o filme meses mais tarde, nos estúdios de Joinville em Paris, intitulado então Sierra de Teruel. Apenas depois da Libertação o filme, chamado finalmente A esperança, foi lançado na França.
2. Primeiro e último filme realizado por Charles Laughton em 1957.
3. No original, relever: assinalar, enfatizar, ou fazer jus a.

Jaime, Antonio Reis. Por Jean Louis Schefer

Em 1973, Antonio Reis consagra um filme à obra de desenhista de um camponês, Jaime Fernandes, rodado nos locais de seu isolamento psiquiátrico. Em primeiro lugar, sou atraído pela sutileza do propos, enfim distanciado desta odiosa apologia da loucura como fonte ou causa do talento, cujo modelo tem conhecido, de Artaud a Rodez, irresponsáveis e desastrosos elogios. Talvez consista nisto toda a dureza poética do filme: é um poema do sofrimento, da nitidez ( netteté) da solidão.

Trata-se de um filme sobre uma obra, sobre suas condições, sua incompreensível solidão? Sobre um mundo distante, a alma exilada que ronda em torno de um hospital construído como uma arena de touros; o detalhe da água, da pedra, da vegetação, as linhas das colinas que fecham este circo, onde todas as coisas forjam uma fortaleza de solidão?

Documento extremamente singular, catálogo, comentário da obra de desenho de Jaime. Mas do que exatamente se trata, e porque chamar isto de um filme? Como se desde o jato de água animado da fonte arredondada, centro extraordinariamente deslocado, como um signo de luxo ou de piedade neste hospital rude, pobre, expondo brutalmente a falta de dinheiro, a ausência de linguagem, de intimidade, de comunidade; como se todas as coisas fossem postas à distância deste espelho de água e do balbucio desta fonte. Se refletirmos bem, esta que jorra, recortada, retomando desesperadamente sua coluna de influxo é aqui a única imagem da vida, e a única palavra que jorra de um corpo. Aprisionada em seu espelho redondo, não está ao alcance da mão, frágil, intocável, perpétua e dura; ela fala, mas é como a haste líquida postada no centro desta arena trágica.
Trágica? Por que este rigor, esta inteligência sensível e implacável do que é uma coisa e do que é um homem feito coisa, ou seja, privado de todo uso de si mesmo e dos outros - dos homens ancorados, por exemplo, como galinhas sobre um poleiro de madeira, ao longo dos muros-? Por que Antonio Reis, que maneja como nenhum outro pintor hoje ao próximo e ao distante, a sombra e a luz ( e até mesmo num quarto de hospital, o encontro casual de um guarda-chuva e de uma máquina de costura), por que e em nome de que signo de desesperança e de vaidade do movimento e das aparências, por que ele nos mostra a água? Trata-se de uma coisa que, tal como este coração gélido e este centro líquido através do qual o Sigismundo de Calderón, aprisionado em sua torre, transforma na metáfora de seu sofrimento e de seu desespero por não ser adorável?

O que significa então este mundo percorrido em compasso, este passeio dos olhos sobre a linha das colinas, a vegetação espessa, a água do riacho que corre sobre as pedras, o refeitório camponês, o dormitório silencioso e que se retrai sobre uma série de desenhos de Jaime? Cabeças vagamente aparentadas a perfis de Brauner, gatos ou animais, arredondados, dorsos musculosos, pêlos serrados como bolotas de lã, cuja silhueta faz aparecer sobre suas cabeças a imobilidade e a fixidez de um olho egípcio.

Um filme de Antonio Reis? Admirável poema, feito de deslocamentos de imagens e de coisas, deslocamentos efetuados sobre o que resta. O que resta não é a causa do que parece concluir a obra desenhada de Jaime. Todas as coisas mostradas são como pedras semeadas por uma criança perdida, não os marcos de seu caminho de retorno mas os signos traçados, semeados de seu abandono. E até mesmo o olho vívido, móvel, úmido da cabra, enclausurada numa espécie de tricot feito da lã de seus pêlos. Extraordinária inteligência do desespero e do quimérico que presidem aos jogos das crianças. É o que Paracelsus nomeava a prima matéria: “Ela é visível e invisível, e as crianças jogam com ela na rua”.
O que constitui este filme é coisa muito distinta de uma memória ou progressão de imagens, ou mesmo este perpétuo desenvolvimento de encadeamentos fatais de ações humanas que conduzem ao túmulo, às bordas de um abismo ou aos limites de uma terra habitada onde cessam ( em todo filme) as ações, as palavras e até mesmo a possibilidade de sugestão das imagens.
O que este filme mostra com força ( a força das coisas conjuntas, como paisagem, interior, décor) não é nem um processo, nem uma explicação ou denunciação do sistema carcerário do hospital; as coisas que se sucedem como imagens ( o plano vazio, a fonte, a taça e sua colher, a máquina de costura, o guarda-chuva, os homens e suas sombras,a pobreza do hospital e da paisagem) são encadeadas sem causa. Todas constituem coisas sem ação; isoladas como objetos encontrados ao acaso; se os filme as encadeia ou enumera, elas se adicionam em uma soma misteriosa da qual não resultam estes corpos negros, cerrados, duros, compactos, e no entanto de uma armação tecida sem falhas, os estranhos animais de Jaime, ou gatos advindos de um outro mundo, cujas fronteiras eles parecem guardar.
Pois é preciso velar por. O que faz aqui Antonio Reis? Ele não explica uma obra; ele ilumina um pouco mais, por uma extraordinária contenção de seu tema ( algo assim como um deserto) a magia e ambigüidade do cinema. Capto rapidamente que esta câmera que estreita o real possui, no próprio movimento de seu cadre, na mobilidade flutuante de seus travellings em diagonal ( os corpos das pedras, o fluxo da água, o roçar das ervas), neste círculo insensível que limita este mundo a um curto horizonte, delineando-se sinuoso sobre o dorso das colinas, integrado ao jato de água tremulante da fonte como à ponta de um compasso; compreendo que esta câmera se apossa dos corpos das coisas em seu abandono de objetos; a espécie de planalto desértico, de que estes corpos constituem a paisagem e a população, é um mundo do qual cada parte perdeu seu corpo; um mundo de metáforas errantes.
Não concordo que Antonio Reis filme ou fotografe naturezas-mortas (e, no entanto, ele o faz melhor que ninguém), mas que todas as partes deste mundo estão ao mesmo tempo isoladas e solidárias: que estes extraordinários portraits de gatos foram também passagens de silhuetas estendidas sobre os lençóis do hospital lançados ao vento, que estes animais ou estes homens, guardiões de um mundo desconhecido- e desconhecido deles mesmos- eram também estes dois ou três homens em pé, dançando num pé apoiado sobre o outro, alinhados sobre um banco de madeira como galinhas sobre um poleiro, e cujas sombras dançavam, balouçavam, se imprimiam apenas por um instante como um afresco provisório sobre a superfície côncava do árido branco do muro do hospital. O poleiro das sombras, a única galeria desta arena no centro da qual apenas um jorro de água se eleva perpetuamente, se estira para o céu e vacila indefinidamente, como o único relógio no coração deste mundo feito de círculos acumulados e sobre os muros sobre os quais estes se aninham, como as sombras dos homens arqueados ou suas figuras imóveis, os magníficos guardiões do Desconhecido a céu aberto.
Também não faço idéia de como esta pura obra-prima perpassa pelos objetos como um sopro desenfreado de viração; o que sabemos desde a infância: as coisas, os objetos, as distâncias que os separam não são feitos para nós. Estes corpos abandonados são metáforas vagabundas: foram o corpo de nossa solidão.


Jean Louis Schefer, Revista Cinémathèque, número 13, páginas 4-7. Primavera de 1998.
Tradução: Luiz Soares Júnior