quarta-feira, 7 de julho de 2010

Ensaio de um crime, por Eric Rohmer


Archibald de la Cruz teve a feliz sorte de ver uma outra mão perpetrar crimes que uma não menos feliz sorte lhe impediu de levar a termo. Tal é em duas palavras o argumento do filme que Luis Buñuel realizou no México, há três anos. Como todo conto bem construído, este deixa à interpretação uma margem considerável. Devemos entender simplesmente, como o autor nos sugere numa breve cláusula- cuja ingenuidade só é disputada pelo esplendor de sua ilustração- que é conveniente não tentarmos complicar a vida, e assim mandar ao diabo escrúpulos e casuística? Ou, forçando um pouco a interpretação, devemos considerar os objetos femininos destes assassinatos como os diferentes símbolos dos tabus burgueses ou religiosos que todo homem que se dá ao respeito deve se apressar a abandonar?

Devemos enfim ver neste apólogo uma adição buñueliana à famosa obra de Thomas De Quincey: Do assassinato considerado como uma das Belas Artes, caro aos surrealistas de todos os matizes? Na dúvida, vamos nos ater às aparências, ou seja, às imagens, amplamente fascinantes, embora sejam isentas do cinismo que um Hitchcock ou um Stroheim pudessem ter-lhes imprimido. Mas deixemos a Buñuel seu universo próprio, sobretudo quando temos a chance de encontrá-lo melhor “calçado” ( charpenté) do que de hábito.Eu acabei de empregar o termo “ingênuo”. Não foi com má intenção. A crueldade de nosso herói é a mesma das crianças que torturam um animal ou maltratam um brinquedo: e, de fato, é exatamente sobre um brinquedo- um manequim- que esta crueldade vai se exercer. Sadismo? Estamos a léguas disso. A morte ( lembrem-se da fusão da boneca no forno) parece restituir a vida ao rosto morto: o olho brilha, movimenta-se, a carne palpita, relaxa, à medida em que se decompõe, e percebemos bem que, neste momento, Archibald, que possui o coração mais puro do que acreditara, apaixona-se pela moça que servira de modelo à figura de cera. Da mesma forma, a face “embonecada” da jovem noiva se animará por um segundo: quando o ex-amante empunhar contra ela o revólver e fazer fogo...

Se insisto sobre esses detalhes, é porque busco sempre em Buñuel- cujos “dadas” sociais ou filosóficos me incomodam frequentemente por seu caráter primário- o momento onde o traço ultrapassa a intenção da mão que o delineia. Deplorei muito a ausência destes momentos escolhidos em seus dois últimos filmes ( e sobretudo em Cela s’apelle l’aurore), por não ter sido satisfeito para além de meus desejos. E isto na medida em que a visão anterior e privada de Archibaldo havia dado justamente fundamento às minhas exigências.

Não há sátira melhor do que a que se nutre da sobriedade de elementos ordinários. Clero e polícia figuram em bom lugar na ação; o golpe lançado contra estes é adolescente, mas vivo, elegante, sem precauções oratórias. Muito bem-vinda igualmente a caricatura dos turistas americanos: nenhum ou quase nenhum exagero.

Prossigamos nos elogios. A arrogância um tanto risível dos personagens se acorda com sua classe e meio social. Os efeitos mais preciosos, os gestos mais plasticamente concertantes só participam discretamente deste estatismo, que não é em geral o menor pecado de Buñuel. Assim como liberara o herói, o manequim libertou Buñuel de seu complexo de imobilidade, vítima expiatória do crime de lesa-Majestade ao cinema, que é o de conceber a beleza segundo as normas de Baudelaire.


É por este motivo que passarei rapidamente pelos méritos mais evidentes do filme, os pictóricos. E no entanto, este décor moderno com seus brancos e negros untuosos, estes bibelots barrocos, estas roupas sofisticadas, este magnífico parque do final do filme, são em grande parte responsáveis pela fascinação exercida sobre nós por estes crimes imaginários ou reais , luxuosos e cintilantes como uma vitrine de joalheria. Que importa, afinal, a significação do símbolo? O que nos é dado a ver contenta suficientemente um apetite de essência muito delicada para ser insalubre. Aí reside, penso, a verdadeira moral da fábula.

Já devem ter adivinhado que, de todos os filmes, antigos ou modernos, de Buñuel, Archibald de la Cruz é aquele que mais estimo, o mais prazeroso e bem acabado. Eu o prefiro até mesmo a El, onde o ar que circulava não possuía esta limpidez cristalina. Ali, o entomologista mascarava o poeta; percebia-se um certo desprezo pelo personagem. Aqui, Buñuel é o cúmplice amável de seu amável herói, se não de intenção ao menos de fato. E sabemos bem que, no cinema, não são as intenções que importam.



Eric Rohmer


Arts, outubro 1957


Tradução: Luiz Soares únior.

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