sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Menos com menos é igual a mais




1.      1. Há em Le départ uma cena onde Jean-Pierre Léaud e seu cúmplice, ele também garçon-cabeleireiro, fazem-se passar por um marajá e por seu secretário. Compreendemos rapidamente que se trata de uma fraude ( risos) , mas ao mesmo tempo é difícil não acreditar na existência do tal marajá. Estes poucos segundos contém talvez toda a arte de Skolimowski: um homem que contaria maravilhosamente suas histórias e que as terminaria com um sorriso fino, zombando da credulidade da plateia. Que preço teria a derrisão se ela não se acompanhasse de uma arte ao menos à altura de tornar as coisas plausíveis? Aqueles que zombam de suas próprias palavras devem ser antes de tudo grandes oradores. Senão...


2.     2.  Em O départ, um jovem de Bruxelas sonha em participar a um rally automobilístico. Como deve ser ( constante skolimowskiana), uma moça mais calma e mais velha que ele torna-se, sem razão aparente, sua cúmplice e companheira. Depois de uma jornada exaustiva ( discussões,  vendas e trocas, brigas, tentativas de estupro, trabalho, encontros, etc), o herói aluga um quarto de hotel. Na manhã seguinte, é acordado pelo ruído dos carros que passam: ele não tinha se acordado a tempo, perdeu o rally. O que é fortíssimo nesta história  é que em nenhum momento prevemos este final, quando no fundo, segundo toda a lógica, este é o único possível. Quando chegamos na última cena, se diz: “claro, claro...”, mas já é muito tarde. Em Le départ, Skolimowski  portanto soube melhor dissimular os enlaces de sua história que nos filmes precedentes. Ele prova assim que pode se dar bem em qualquer horizonte de cinema, por exemplo o filme comercial...


3.      3. Ao mesmo tempo , Le départ é um filme “de nada”, menos audacioso que La barrière, menos soberano que Walkover. Para isto,  há diversas razões, todas secundárias: diálogos menos bem cuidados ( Skolimowski não fala bem o belga); foto ( Kurant) um pouco suja,etc. É preciso tomar este filme por um exercício de estilo e detectar os riscos da arte pela arte. Aliás, seria inútil criticar a Skolimowski seu excesso de talento. Ele tem o direito de fazer um ou dois filmes na linha de Walkover, visto a importância e beleza deste último.


4.     4.  Os personagens de Skolimowski  são tão mais obstinados , ligados a uma idéia fixa quanto mais o mundo não cessa de se retrair a seu contato. Eles só podem de viver à espera de um acontecimento importante, de uma prova de força decisiva, coisas que jamais chegarão ou chegarão mal. Só subsiste um frenesi, e isto na exata medida em que é alimentado de entropia. Não haveria em seus filmes como ter ponto final, uma lição medida, na medida em que todas as paródias são permitidas. É que o provisório é a única realidade, o único valor e talvez o último. Certezas fugitivas, pontos de referências irreconhecíveis ( travestidos), o  mundo continua seu jogo, mas algo nunca está no seu devido lugar. Esta naturalidade mesma é suspeita: é um sonho cujo sonhador sabe que logo estará acabado. Momentos onde tudo é suspenso, provisório, inacabado ( de que Gombrowicz diz que eles são a busca- provisória- da “imaturidade”).


5.    5.   Voltemos ao marajá. O gosto de Skolimowski pelas  farsas, as gags, é sem dúvida polonês, , certamente uma sobrevivência potache, com certeza uma coisa importante. Se todo filme se revela ao final uma mistificação, muito barulho por nada e  um falso rigor servindo a um real sentimento do vazio, é evidente que cada plano, a cada instante, pode ser “uma armadilha”. Assim, o que parecia espontâneo pode revelar subitamente (  basta um travelling dianteiro, para  trás, ou um zoom) seu pertencimento a um plano premeditado. Tudo é legível a vários níveis: vemos assim os “irrealismos” e estranhezas de Walkover e de La barrière tornarem-se explicáveis, realistas, em um certo sentido. O sonho e a realidade se livram a uma troca de bons procedimentos ao termo do qual acabam por se parecer intensamente. Pensemos na sequência que abre La barrière. Quem ousará desde logo se pronunciar sobre o que seja aquilo?


6.     6.  Eis o domínio de Skolimowski: convencermo-nos ao mesmo tempo do  caráter evidente e arbitrário do cinema. Um plano pode pertencer simultaneamente a dois ou três contextos possíveis, onde ele teria a desempenhar um papel diferente mas plausível. Trata-se unicamente de não limitar o sentido, -não, é claro,  fazendo filmes “insensatos”, mas pelo contrário: dando-lhes um excesso de sentido. O que conta é o deslocamento ( dépaysement): durante alguns segundos, , não mais reconhecer o mundo ou a praça de Brouckère, nem mesmo saber mais se este mundo foi feito para nosso uso. Durante um segundo, duvidar de tudo e não mais se habituar. Habituamo-nos menos às coisas quando elas possuem duplo ou triplo sentido. O que contam seus filmes : vale mais a pena se agitar em todos os sentidos do que chegar em algum lugar. Esta é também a maneira como são contados: vale mais agitar todos os sentidos, todos os registros...Skolimowski é o homem que diz: vejam um personagem; se eu o filmo de longe, temos uma comédia musical; de mais perto, um melodrama; de mais perto ainda, temos cinema verité. Tudo é verdadeiro. Que cada um escolha o que lhe convém. Eu escolho tudo.



Serge Daney, Cahiers du Cinéma, 192

Tradução: Luiz Soares Júnior.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Tempos de guerra por Jean Narboni




Muito mais que aquilo que fere, o público teme aquilo que se recusa. Ele espera de um filme que se enderece a ele e o comprometa no jogo de uma mecânica fascinatória, oferecendo-lhe certas referências e suportes que lhes possam oferecer um apoio. Ao se ver confrontado com o desenrolar fixo de superfícies lisas, sem impacto  nem captação possíveis, ele se sente insatisfeito, inútil. Talvez as razões às quais se atribua o insucesso comercial de Tempos de guerra  (perplexidade diante de uma série de fatos desprovidos de outra função que a informativa, a impossibilidade de designar tranquilamente culpados em personagens, aliás, aos quais é impossível se identificar) tenham seu ponto comum em uma privação diante deste filme sem horizonte prévio  (arrière-plan), subterfúgio ou nenhuma espécie de densidade, filme cujo mistério se expõe a céu aberto, e que, rebelde tanto à decifração quanto à refração, apenas exige uma leitura de suas superfícies. Neste sentido, as desgraçadas aventuras de Michel-Ange  e de Ulysse ( vasta soma de frustrações) figuram excelentemente as frustrações de um público que substitui também a impaciência ao recolhimento, a acumulação à síntese, a desmesura à modéstia, ansioso por um “segredo atrás da porta” ( não há nenhum, é claro, mas de qualquer maneira os carabineiros perderão a vida) e, ao não receber  a verdade em sua clareza imediata , só descobre, ultrapassados os limites da tela, o seu duplo agonizante.

O espectador aliás aceita muito bem a não-identificação, desde que se lhe acorde o papel de testemunha onisciente e a possibilidade de um sobrevôo explicativo sobre a obra. Mas, igualmente privado deste privilégio, ele se vê senão confundido aos personagens, ao menos relegado ao seu nível, submetido aos mesmos avatares, obstinadamente apartado de um domínio que, como eles, ele anseia possuir ( para eles: a guerra, o rei, o inimigo, o Universo; para o espectador: o filme). O mal-estar intensifica-se com o fato de que este aspecto incontrolável do filme se dubla de uma brevidade do traço, de uma retração do tempo, à medida em que os eventos são apresentados em estado bruto. Godard explicou-se claramente em relação a isto: cada sequência, ou mesmo cada plano, corresponde a uma idéia, um sentimento ou um fenômeno preciso em relação ao fator guerra: a violência, a ocupação, os sequestros, o silêncio... A composição do filmar não advém, portanto, da ordem do desenvolvimento, mas da repartição. Às clássicas variações sobre o tema da Guerra, objeto único apresentado sob luzes diferentes, Godard substitui  o seu contrário: a distribuição, segundo a definição de Stockhausen, de “objetos diferentes sob a mesma luz, que os atravessa”.

Resta a objeção massiva e, segundo cremos, definitiva: por que os cartões portais? Para isto, basta responder que estes figuram, com a falsa evidência de um epílogo , o lugar de colisão das múltiplas células do filme( epílogo enganador, desmentido por sua vez pelo que se lhe segue: a desintegração desta ordem). Além do mais, esta estratégia corresponde a um dos Axiomas mais fundamentais da arte atual: “diz-me como tu classificas, e eu te direi quem és”- enfim, admitimos   com facilidade a monumental enumeração de navios, armadas- mas em Homero, é claro. É verdade que neste caso temos o prazer ou o luxo de saltar as páginas em questão. Tempos de guerra nos interdita esta operação: impossível escapar ao filme, impossível captar seu tempo. Nem do lado de fora, nem completamente dentros do filme, ao mesmo tempo contemporâneos e em retardo, o espectador sofre a experiência da mais inconfortável das posições. Mas esta situação falsa é também- é por aí que o filme redefine a noção de espetáculo- a situação verdadeira do espectador: contíguo à obra sem com esta confundir-se nem misturar-se, presente no filme, mas presente de como se diz de uma testemunha que assistiu ao acidente. É o lugar do espectador absoluto. É natural que esteja vazio.



Jean Narboni, Cahiers du cinema, 161-162

Tradução: Luiz Soares Júnior.