quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A tela do fantasma





1. Glop. “Ele te sacode, te joga para o bucho e...glop!” É o tubarão, o grande branco ( great White) descrito por Quint durante a primeira aparição do bicho. Somos tentados igualmente a ver aí uma definição do impacto do filme, ou mesmo do tipo de cinema que ilustra: ele te sacode é o primeiro grau, o suspense, o medo; ele te manda para o bucho é o segundo grau, a simpatia para com o herói diante do perigo; a comunidade humana que, na sala escura, diante da infinitude de ondas e o horror que trazem, se unifica; e com o glop!, temos novamente a lei da pulsão, a paranóia social, a familiaridade pequeno-burguesa que te atingem insidiosamente no ritmo dos retornos à tela da grande boca denteada. Podemos então aplicar a  frase de Quint ao sistema social por inteiro, a sociedade dos Grandes Tubarões brancos ( aliás, este tubarão não é chamado de “branco” por acaso, não é?), à sociedade, esta “flor carnívora”, como lhe chamou um slogan de Maio de 68.
Potência da metáfora: estas mandíbulas se abrem em múltiplos sentidos. Impacto social deste cinema deliberadamente dependurado no anzol do fantasma. Deliberadamente mítico, resolutamente épico ( perto dele, o cinema europeu, ou pelo menos o cinema francês, em sua grande maioria aparece-nos como um cinema anêmico, sobretudo quando se pretende de aventuras, à La Melville, Verneuil e Labro).

2. Mandíbulas. O operador do suspense, do medo, é o fora de campo: ou antes, dois tipos de fora de campo articulados um ao outro. Um fora de campo metonímico, contíguo ao campo visual, de onde pode surgir a qualquer momento a Besta ( ela deve, evidentemente, aparecer ali onde – e quando- não a esperamos, por exemplo no estuário quando, quando a acreditamos situada ao largo da praia, ou detrás da vítima...) e que torna sensível a analogia entre o plano, a tela e a superfície da água: superfícies calmas, águas subitamente revoltas, perfuradas pelo que surge das profundezas. A metonímia, que agita o corpo, duplica-se assim com uma metáfora, que agita a alma: este fora de campo é também o irredutível declive de sombra, o abismo tanatológico, a insondável noite onde a Besta condensa seus pavorosos prestígios. Dois tipos de fora de campo, dois registros de narrativa: a metonímia é o registro da caça, do suspense, do futuro imediato; a metáfora é o registro da História, da culpabilidade e do passado profundo ( a história de Quint, os tubarões de Hiroshima, cena primitiva e pecado original). A articulação destas duas mandíbulas arrebata o naco.

3. Sacos. Em Tubarão, tudo é corpo, ou seja saco, ou digamos mesmo saco de lixo. Um dentro e um fora, um fora que aprisiona um dentro ( seu princípio vital). Sob a  perspectiva dos dentes do mar, as diferenças são abolidas entre um homem, um cachorro, um colchão pneumático, um barco a motor, um botijão de oxigênio. Como o próprio tubarão também não escapa à regra- como ele mesmo “é feito como um saco”), é mortal. No entanto, esta obsessão do corpo como um saco ou uma caixa ( a mais simples expressão do imaginário) necessita de uma observação: o horror consiste em que o corpo seja aberto. A boca escancarada do tubarão presentifica este horror sob um modo dramático, e não deixaremos de invocar a este propósito a vagina dentada, a castração, etc. ( vejamos a narração de Quint: ele te fixa com um olho morto, depois, quando adere a teu corpo, os olhos ficam brancos, etc). Mais interessante, mais significativo no entanto me parece aquilo que cristaliza a figura do oceanógrafo: a saber, a obsessão – horror e desejo mesclados- de ver o que existe no interior. No interior de que? Do corpo, e portanto isto quer dizer de qualquer coisa: começa com os restos humanos na espécie de barca com gelo do necrotério, depois o cadáver do pescador em seu barco fulminado, os dejetos heteróclitos no estômago do primeiro tubarão, e enfim o próprio tubarão, entendido como aquele que se esconde sob a superfície da água.  Compulsão de ver o inominável, de fazer emergir o fedor dos maus objetos internos. É assim que o caçador de tubarão e o oceanógrafo são complementares, e formam um quadro coerente da neurose social de nossa época, e especialmente da americana: a paranóia do primeiro frisa e guia a neurose obsessiva do segundo, paranóia e neurose obsessiva cujo leve excesso é corrigido e tornado normativo pela figura do policial, o Americano médio. História de homens, é claro, e de homossexualidade edipiana de grupo: vejamos a sequência da exibição mútua das cicatrizes ( as sérias) entre o caçador e o oceanógrafo; mas também a sequência derrisória, mas tão simpática e humana, da apendicite do policial ( grau zero da laceração/inscrição 1 simbólica). O que elas assinalam- estas cicatrizes, feridas cerradas e integradas à memória do corpo, nesta sequência de ternura viril cujo efeito especular é garantido na sala? O cálido pertencimento à tribo humana; ou seja: extra-sexo ( horsexe). 2
Do que em definitivo se trata aqui? Exatamente da mesma coisa que em O exorcista ( onde os padres eram três), de que Tubarão está bem mais próximo que de Os pássaros: é a subtração do sexo que se trata de conjurar aqui, e igualmente do abalo pânico que invade o corpo diante desta possibilidade.


Pascal Bonitzer, Cahiers Du cinema, 265

Tradução: Luiz Soares Júnior





Nota:
1 scarification.


2 A psicanalista lacaniana Catherine Millot chama de horsexe ao transexualismo, mostrando que na mulher a ânsia por ser amada como “um”homem é efeito de um processo histérico, ao passo que no homem a vontade de erradicação do órgão peniano consiste numa identificação psicótica com a Mulher, isto é, com uma totalidade impossível. 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Les grandes marches


Esqueci em que circunstâncias exatas eu conheci Daney- na época, nos chamávamos por nossos nomes ( sobrenomes). Este grande rapaz austero, sentencioso e apaixonado me intrigava. Ele acabara de seguir, como nós, a retrospectiva Hawks de 1962 na Cinemateca da rua de Ulm, onde Jean-Pierre Biesse, o primeiro morto dentre os cinéfilos de nossa geração, deixava-se regularmente deslizar ao longo da rampa que levava ao subsolo, e assim chegava antes ao guichet, sorridente de ter passado à frente de todo mundo para ver Le harpon rouge ou Ceiling Zero. Daney pertencia ao pequeno grupo vindo da classe de Agel no Liceu Voltaire, que iria atrair nossa atenção pela audaciosa fundação de uma revista, Rostos do cinema, que nos propunha um número Hawks e um sobre Preminger. Eu creio que ele entrou nos Cahiers antes de mim, e eu o encontrava ao acaso entre nossas idas à revista ainda amarela e entre projeções de filmes na Cinemateca, aos diversos cineclubes ( de forma notável o Cine Qua Non em Escurial, onde descobrimos An affair to remember de Leo McCarey, House of strangers de Mankiewicz e sobretudo Wind across the everglades de Nicholas Ray 1, em projeções magníficas à época). Esqueci muita coisa desta época em que eu era estudante, e as lembranças que restam se misturam.

Foi apenas em 1970, depois de quatro anos passados na Itália, que eu reencontrei Daney nos Cahiers ( o Cahiers tornado austero, como prolongamento de 1968). Ele tinha mudado: estava sorridente, engraçado, não tão sério quanto esta sinistra França de Pompidou. Daney evocava suas viagens naquilo que se chamava então terceiro-mundo, e eu tinha sido muito marcado por um texto que ele escrevera sobre Pocilga e sobre a relação que estabelecia no filme a partir das palavras porco e corpo. Nesta época, Daney falava com freqüência de Paulhan, de que admirava a escritura enigmática, esta forma perturbadora de parecer arriscar palavras modestas. Ele amava os cadernos encadernados de páginas coloridas que não ousava recobrir de tinta, as canetas e os lápis, os livros de Stevenson, de quem no entanto vendeu a edição completa de Edimburg a Bernard Eisenschitz para se pagar uma viagem- talvez à Índia. Foi nesta época que descobri em Serge alguém que adorava falar e rir. Começou então nosso hábito de nos encontrarmos nos cafés, e sobretudo nos restaurantes. O primeiro de que me lembro foi o Petit Marseillais, rua de Charonne, que permanece de pé mas que perdeu seu grande cartaz do lado de fora representando Carlitos , cartaz sobre o qual se pregava o cardápio operário que nos satisfazia. As mesas eram coladas umas ao lado das outras, e no meio do burburinho podíamos citar de letra as réplicas do Tigre de Bengala e do Túmulo indiano, que neste período tão sisudo exprimiam a liberdade de viver e o verdadeiro sublime popular- uma vez que já os havíamos compartilhado tantas vezes com os espectadores de todas as cores das salas dos bairros do XI e do XX distritos. O fato de que na época houvesse a efervescência Godard-straubiana não perturbava em nada nossa admiração, capaz de se deslocar rapidamente de uns aos outros, com o auxílio- no caso de Serge- de teorias de que ele se apossava com sua maneira tão pessoal de assimilar todas as coisas. Algum tempo depois- apesar dele dizer em algum lugar que fui eu que o levei a descobrir Jacques Tourneur-, foi ele quem me falou em primeiro lugar de forma tal que eu não pude senão passar a amar os filmes deste cineasta. Foi a partir deste momento que comecei a receber cartões-postais que Serge enviava a algumas pessoas de todos os países onde se encontrava. Os textos, ao contrário dos que escrevia sobre cinema, eram deliberadamente leves e frívolos: jogos de palavras, referências, comentários sobre o cartão escolhido, citações desviadas de diálogos de filmes, evocações de personagens. Aquele que freqüentemente voltava à baila como o mais belo personagem do díptico indiano de Lang era Asagara que, como que por acaso, fazia a ligação entre o Maharadjah, o arquiteto e a dançarina.  Há muito de Serge neste personagem: esta forma de acusar a paulada recebida em silêncio, que se adivinha através de uma passageira perda de presença no olhar.

Esqueci de dizer que um evento cinematográfico importante havia abalado nossas certezas de herdeiros da Nouvelle vague: foi a retrospectiva John Ford, que havia feito em 1963 a gloriosa inauguração da Cinemateca de Chaillot; esta iria impor uma polêmica, jamais resolvida e sempre viva, sobre quem seria o maior entre Hawks e Ford, polêmica concernente tanto aos cineastas quanto àqueles que refletiam ponderadamente sobre cinema. Creio que não serei indiscreto se revelar que hoje em dia Rohmer e Brisseau estão em desacordo sobre a grandeza de um e do outro.

De meados de 1975 a 1992, Serge Daney precisou seu pensamento com uma intensa clareza de escritura nos textos que compõem A rampa, Ciné Journal, Le salaire Du zappeur, Devant La recrudescence..., e Traffic; e de uma forma tal que basta lê-los uma única vez para ter uma idéia do que fez ou foi. Eu continuei a vê-lo mais ou menos regularmente: com o tempo, mudamos de restaurante. Ele continuou a enviar cartões postais com regularidade deste ou daquele país. Nos reencontramos em Paul, rua de Charonne, onde a gata Trottinette entronava-se sobre o guichet, por onde passavam pratos copiosos e banhados de batatas saltadas de forma irregular. A conversa podia durar mais tempo, mais tarde, neste restaurante talvez argelino da rua de Lappe, no qual Serge havia achado o contrafilé totalmente honesto. Logo apelidamos o restaurante de Honesto ( sincère). Encontro a tal hora no Honesto! Mais tarde nós o traímos com outro, rapidamente chamado o Neo-Honesto, muito menos satisfatório. Falávamos evidentemente muito e por longo tempo, e eu estava de tempos em tempos em desacordo com seus julgamentos no detalhe, mas regularmente me achava perturbado pela forma clarividente que ele encontrava de relacionar os cineastas do mundo inteiro por meio de encadeamentos de ligações que era o único a encontrar. O que o atraía, como que por uma forma de imantação, era o movimento do cinema em seu conjunto- conjunto constituído de partes distintas que raramente se percebiam umas às outras, e que aparentemente não faziam nenhum esforço para que esta recíproca percepção ocorresse.

Ele, o vigilante, via do alto e de longe aquilo que se tramava nos filmes e entre os filmes, mesmo quando estes eram fechados em sua singularidade. Foi por causa disso que passei a querê-lo ainda mais quando, mais ou menos entre 1983-1984, ele resignou-se rapidamente a registrar aquilo que chamava- e que outros se precipitaram em retomar- de a morte do cinema, confundindo as manifestações mais mórbidas de uma certa retomada ( no sentido de reprise, reprisar) cinefílica com coisas mais soberanas e então indiscerníveis. Foi em parte por oposição ao seu diagnóstico, que eu atribuía à sua fascinação pelas mídias que ele expunha no Libération, que empreendi nos Cahiers as “Crônicas de cinema” em 1985. Mas ele permanecia no entanto meu principal interlocutor, e quaisquer que fossem nossos dissensos e às vezes nossas disputas- foi a única pessoa com quem me irritei várias vezes-, jamais foram por razões pessoais; e com o tempo, se consolidaram nossas posições de fundo sobre o cinema e a curiosidade maior, em relação a Serge- eu era mais confiante, logo menos curioso- por aquilo que o cinema iria se tornar. O projeto da Traffic nasceu em 1986, e  Paulo Branco devia ser o produtor. O batismo deste projeto de revista deu-se no começo de 87 em um restaurante russo da rua de Lappe, cujo standing ( reputação) era manifesto pelo afastamento excepcional das mesas. Pouco convencido com a direção unicamente reflexiva, eu me revoltava contra a idéia de escrever outra coisa senão estas Crônicas, que eu amava como uma espécie de território pessoal onde eu era livre. Com a neve abundante fazendo as vezes de catalisador, terminei subitamente quinze dias mais tarde Le Champignon des Carpathes, que iria me reter ( assim como um infeliz filme em seguida) ocupado longe da escrita durante dois anos.

Foi só no fim de 1990, com tantas coisas acabando mal- Serge com o vírus da Aids, os eventos internacionais tendo como conseqüência a vexação das mídias, a Romênia e depois a guerra do Golfo à porta-, que eu tive a certeza de que havia urgência em fazer a Traffic. Desde outubro de 1990 até os últimos dias de sua vida, fui impulsionado pela força moral de Serge que, eu creio, marcou a todas as pessoas de quem se aproximou. Ele jamais perdeu esta capacidade que tinha de se rir das coisas divertidas que lhe contavam e de contá-las ele mesmo, pelo prazer de encontrar a palavra certa, forçosamente engraçada, contar coisas que o intrigavam ou retinham sua reflexão.  Pela primeira vez, se ele se sentia definitivamente não-reconciliado com a sociedade- mas amando mais do que nunca o mundo sobre o qual o cinema havia velado desde seu nascimento-, eu me sentia totalmente em acordo com ele em todos os pontos, até o limite de crer que eu encontraria por minha conta tudo o que ele pensava, de tal forma me identificava com as formulações felizes que inventava espontaneamente. Falar, que quando em demasia o fatigava, era no entanto um oxigênio que acabou por lhe faltar. Ele só nos escutava a fim de relançar seu pensamento, que buscava fazer avançar, esperando ganhar tempo. Eu sabia que podia chamá-lo até 1 h 15, às vezes 1h 30 da manhã. Foi no último mês de sua vida , quando todo esforço físico lhe era impossível ( e quando ele queria economizar o que lhe restava para poder escrever de manhã), que eu me resignara a jamais chamá-lo depois da meia-noite. Ele era orgulhoso a ponto de querer dar a impressão de que jamais precisava dos outros- só me chamava para falar de Trafic-, ele que jamais cessou de estar à frente dos outros, ao descobrir seus filmes. No planeta estilhaçado do cinema dos anos 60, ele ia ao encontro destes pedaços que não podiam mais se integrar: foi o primeiro a nos assinalar, ao escrever, a existência de Pelechian e Kiarostami; ele nos lembrou que havia outras capitais de cinema que não Roma e Hollywood, que elas estavam disseminadas pelo mundo, no Burkina-Faso, no Irã, em Portugal, nas Filipinas e além: e que podíamos identificar estas capitais tão logo um cineasta- isolado como estivesse- registrasse sua percepção do mundo onde vive e inventasse sua forma particular de dizê-la.  E que o cinema vivo nascia deste passo. Ele me fez tomar consciência que eu mesmo desde a infância era enojado com o cinema francês dos anos 40-50, e que o cinema também podia apreender a vida, coisa que adivinhávamos no cinema italiano e, com muita ingenuidade ( naïveté), nos filmes hollywoodianos. Parece-me que eu devo à sua memória contar que ele tinha a intenção, logo depois da polêmica a propósito de Uranus, de enviar a Claude Berri um exemplar de Devant La recrudescence... com a dedicatória- retomava o termo com que ele havia saudado Berri- “Tiens ma poule, voilà de la lecture! ( Toma, minha vaca, eis o que deves ler!). E que havia renunciado a isto devido ao esforço de buscar o endereço de Berri, acabando por confessar- diante desta evidente perda de tempo- que ele não queria mandar nada realmente. Serge considerava que o cinema havia de tal modo se estreitado em alcance, que não se podia mais odiar ninguém, e calarei pudicamente o nome de seu único inimigo.

Trafic se fez regularmente no Grandes marches ( restaurante parisiense), Place de La Bastille, que nós batizamos sem o menor sucesso de Place Straub em homenagem ao movimento giratório de Trop tôt trop tard. Outro lugar destruído de que o cinema dá testemunho. Era no Grands Marches que S.D. recebia as pessoas, e a primeira quarta-feira em que a reunião hebdomadária foi anulada- já que acabara de chegar de viagem e me encontrava só no Grands marches-, eu a experimentei como um dia de luto. O primeiro filme que vi com ele em sala foi Van Gogh, e  o último que teve forças para ver foi Antígona, que vi mais tarde. Serge foi o primeiro- e desde muito tempo já- a ousar brincar com os Straub, que possuem na verdade mais humor e senso cômico que muitos cineastas; ele, que escreveu os melhores textos e mais profundamente admirativos que escreveram sobre eles, ousou ( ele me contou ao telefone) dizer na saída de Antígona a Jean-Marie Straub: “Eu preferia seu período frívolo”. Eu não vejo Kazan ou Kubrick aceitando ouvir coisas assim, pelo menos não como uma eventualidade concebível.

Sempre ao telefone: uma noite, Serge me explica longamente os movimentos migratórios dos povos quase esquecidos através da Sibéria, o Irã, o mundo árabe; ele tinha uma febril paixão em querer manter presente em sua memória, com a ajuda de um grande atlas desdobrado, esta intensa circulação humana que não havia cessado de existir em certas partes do mundo, descrevendo-as como se o cinema tivesse registrado e guardado alguma coisa que nenhuma simplificação interpretativa, nenhuma visão esquemática das paixões, dos desejos, das circunstâncias econômicas e históricas pudesse desbotar. Como se o Mundo só estivesse esperando que Griffith e seus genros Walsh e Ford, e seus pequenos sobrinhos do outro lado do Atlântico (Godard e Pasolini) pudessem conservar alguma coisa que havíamos percebido, e que ficaria disponível à espera de outros clarividentes transeuntes. Era como uma espécie de embriaguês da memória, onde ele se colocava apenas como uma espécie de médium oral, onde sua própria existência contava pouco, com o senão de que este país que evocava na noite do telefone, Serge havia percorrido ao longo de sua juventude- percorrido a pé e provavelmente nestes velhos ônibus que vemos no Subida ao céu de Buñuel. Eu ainda o vi rir no primeiro dos oito dias que devia durar seu 49 º ano, quando eu lhe contava sobre um dos quatro filmes de John Dorr, The case of the missing consciousness, onde o herói ( interpretado pelo cineasta) está dolorosamente solicitado por dois farmacêuticos rivais, que o usam como suporte de experiências, como se escrevia antigamente, terrificantes e/ou excêntricas ( loufoques). No dia seguinte, quando o SAMU veio buscá-lo para levá-lo até o hospital onde acabaria seus dias, ele ainda teve a leveza de espírito de rir desta coincidência entre seu estado e a narrativa da véspera. Durante sua doença, que durou vinte meses, não pude nada senão calcular a extensão de seu sofrimento.


Jean-Claude Biette ( Cahiers du cinéma, nº 458, julho-agosto 1992)

Tradução: Luiz Soares Júnior

Nota:

1.     As rubricas com os nomes dos diretores são do tradutor


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Rever Verdoux





Haveria um “em si” do cinema, do qual decorreriam regras e exceções? Quanto mais se dissemina isto, mais dificuldade tenho em crê-lo; o cinema, ao final das contas, não é nada além senão aquilo que fazem os cineastas, e a exceção- se ela possui o nome de Eisenstein, ou Buñuel, ou Chaplin- é uma exceção talvez, mas que consiste na conquista, e que não precisa se preocupar com a especificidade do cinema, já que a funda, assim como Bach ou Schoenberg preocupam-se menos em instituir uma escritura universal que em explorar sua própria linguagem, ou Michelangelo em servir mais à pintura ( ou o cinema) que em se servir dela; a arte prefere ser capturada que cortejada. E estamos todos à vontade para admirar o aço cromado ou a pátina com que um Walsh, Dwan, Tourneur, Minnelli  polem suas engrenagens; quais ouropéis  idiossincráticos suspendem-se sob o dorso de suas obras, a elegância e a desenvoltura com que as transportam.; cada vez mais me é difícil não  pensar, antes de tudo, no peso destas obras.
Quem é Chaplin? Um homem livre. Verdoux, quinze anos depois, é primeiramente isto: o filme de um homem livre ( para retomarmos a fórmula de Rossellini, falando de Um rei em Nova York). Exceção esta espécie de homem; regra, pois o Chaplin do Pelegrino ou de Verdoux, o Buñuel de Nazarin e do Anjo exterminador, o Renoir da Regra do jogo e de Elena, mesmo o Brooks de Elmer Gantry, o Rossellini de Vanina, o Mizoguchi das Irmãs de Gion: eis alguns cineastas que possuem o fato  em comum, deixando de lado os seus dissensos, de não serem simplesmente “metteurs em scène”; antes aqui se nota uma prontidão do toque que pode passar- e com frequência passa – por secura ou pobreza, um perfeito pudor das intenções que toma o esquematismo por máscara, e dissimula sob a rapidez do traço a riqueza das contradições profundas- um jogo infinito de trocas entre as significações e os meios. Verdoux é Carlitos; que o seja, mas também é Verdoux.

Mais adiante: qual o fito do cinema? Que o mundo real, tal como se oferece na tela, seja também uma idéia do mundo. É preciso ver o mundo como uma idéia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, ambos com seus riscos. Quem parte do mundo e nele se instala arrisca-se fortemente a não atingir a idéia: estes são os perigos da atitude do “puro olhar”, que os leva a se submeter ao presente, a aceitá-lo tal e qual, a contemplá-lo, como se diz; mas tenho medo de que esta contemplação seja semelhante à exercida pelas vacas que olham os trens que passam, fascinadas pelo movimento ou pela cor e com pouca chance de um dia compreender a significação destes objetos de fascinação, e assim fazê-las se encaminhar antes para a direita que para a esquerda. Partir da idéia, risco inverso: restam neste território nove entre dez, e o campo da História ( do cinema) é semeado pelos cadáveres destes filmes que todos os exercícios de respiração artificial só conseguiram animar no tempo de seu lançamento.

Mas estes cineastas ( para voltarmos a eles), partindo também ( parece-me) da idéia, ou do esquema ( e o arranque é freqüentemente ingrato, árido, sem brilho) recuperam pouco a pouco o real; é porque este esquema não é um esqueleto, mas figura dinâmica, e a justeza de seu movimento, de sua dialética interna, recria paulatinamente, sob nossos olhos, um mundo concreto: outro e explicado, mas ainda mais ambíguo, por ser desta vez idéia encarnada, e logo depois real trespassado de sentido. É também pelo fato de que a  idéia já é idéia do mundo, visão conceitual  ( espetáculo ou metáfora): uma imagem-idéia- seja um grupo de convidados bloqueados num salão, ou o caçador estrebuchando como um coelho, ou o cadafalso diante do convento- ou seja mesmo um “personagem”, tão pleno de contradições que o filme não consista em nada senão no desvelamento metódico destas. Verdoux confia uma multiplicidade de significações não tanto ao jogo de cena quanto à agilidade do ator em inventar, dir-se-ia, diante de nós: mise en scène em torno do jogo do ator principal, e confundindo-se com este jogo. Pois a ação do ator é criação contínua, um motor e um olhar ao mesmo tempo: Chaplin age e faz agir, mas se contempla agir e contempla seu ato através dos outros; ele organiza no espaço da tela uma deflagração do sentido, experimenta um agir julgado por suas conseqüências, de que ele pesa diante de nós, à medida em que o filme se desenrola, as fases e os objetivos: processo de homem de ciência.

Chaplin, Buñuel, Renoir, “filhos deste século científico”; sua démarche é a do físico ou do entomologista: o homem é para eles objeto de estudo e de experiência, mas este homem é antes de tudo eles mesmos. Dialética implícita em Renoir e Buñuel, que o gênio de Chaplin consiste em manifestar em plena luz- ao integrar o seu mito a sua pessoa, sua “lenda” ao seu mito, a História a esta lenda, e  por um sistema de reações em cadeia, obter um corpo novo, irradiado por sua atividade, assim como a História, capturada pela armadilha do mito, revela suas mitologias. 

Reconstituição de um objeto “de forma a manifestar nesta reconstituição as funções deste objeto”: definição, segundo Barthes, da atividade estruturalista, que comanda toda a arte moderna. Assim,  Verdoux é Landru desmontado e reconstruído por Chaplin-Carlitos; simulacro, rigorosamente não-simbólico e sem profundidade, mas formal: “nem o real, nem o racional, mas o funcional”.

A vontade de infligir significação, afirmada pelo próprio recuo que Chaplin assume bruscamente em relação ao papel que interpreta; este recuo consiste no ato de um homem, e é equivalente ao de Brecht diante de Mutter Courage, de Fautrier diante de seus Otages, de Boulez para com suas Estruturas:  o sentido passou por ali, ele foi inscrito; a obra guarda o movimento desta passagem. Esta passagem é o seu movimento- a constatar e retomar.


Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de 1963


Tradução: Luiz Soares Júnior.









Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de 1963

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O príncipe





Entre as estrelas e seus cães, seu sentido do familiar e seu gosto do sublime, vivia o Príncipe de Salina, aquele de Lampedusa. Por que efeito de pérfida metamorfose Visconti fará seu um romance ( aliás sobrevalorizado)? Em Cannes,  em meio à monotonia de obras sem arrogância, foi um  deslumbramento, uma satisfação quase física; em todo caso, um espetáculo mais sofrido que vivido. Perante a reflexão, questões numerosas se precipitam;  a acolhida geralmente reservada ao filme parece-se em demasia com um mal-entendido, quer tenhamos sido fascinados por sua suntuosidade um tanto afetada, ou irritados pela atitude do autor, confortável em seu virtuosismo altaneiro, mais interessado em criar uma existência e uma beleza a prioris que presentear os seus personagens com esta parte secreta de acaso de que depende a liberdade reivindicada com força pela arte moderna, fonte necessária da dupla vida de uma obra...Compreende-se que um viscontiano ortodoxo, como Aristarco, interrogue-se com precaução, e não esconda seu embaraço. Pois passada a primeira visão, parecem simples, simples demais, as posições tomadas, tanto de admiração como de exasperação. A aparente e superficial fidelidade ao romance concerne pouco o essencial: suspeita-se rapidamente, para além da cumplicidade louvada aqui e ali, de uma querela de aristocratas, o conde de Modrone contra o Príncipe de Lampedusa- uma luta surda de palácio por detrás do cerimonial que é o filme acabado. No entanto, os detratores asseveram, não sem razão, que isto não nos traz nada de novo sobre Visconti, príncipe das contradições. Talvez Il gattopardo intensifique, para além dos limites habituais, certas complacências do autor. O paradoxo escrutina: mais longe, ou nem tanto assim. Talvez seja conveniente tomar a obra pelo que ela não é, a fim de melhor saber do que se trata. 

A dualidade viscontiana por excelência ( La terra trema e Noites brancas, o combate e o refúgio) exterioriza-se por meio destes filmes no tempo. Mas estes pólos habitualmente coexistem, poderosas virtudes contraditórias cuja luta dota a obra inteira de sua ambiguidade e força. Visconti é, assim, o homem dos discursos paralelos, da “segunda visão”.  Se Rocco dissimula os faustos da ópera, a ópera pode a seu turno ser uma forma da tragédia social. Assim, Il gattopardo esconde Noites brancas, e a análise o sonho?
Para além da verdade da situação histórica descrita e das inumeráveis precisões de detalhe- que poderiam levar a crer em uma particularização extrema dos propósitos políticos e descritivos de Visconti-, o filme não seria nada além da crônica minuciosa, melancólica e narcisista de uma solidão das mais intemporais? Seríamos tentados a dizer que a situação da Itália em 1860, a decadência e as desilusões da aristocracia, o sufocamento da chama garibbaldina, a ascenção ao poder da ávida burguesia aparecem como elementos mais anedóticos que necessários em relação ao itinerário do príncipe. E que a idéia afetiva de crise, de dilaceramento, à visão da obra, parece tomar a dianteira sobre a importância histórica particular da dita crise. Vemos já aí o ponto que pode ter chocado Aristarco. Se ele prefere Senso a Il gattopardo, não é porque neste a direção de atores lhe parece menos inspirada, nem menos admirável a reconstituição, ou menos seguro o gosto do autor. Não. Simplesmente, ele prefere o marquês Ussoni ao príncipe de Salina; em outros termos: um herói positivo a um negativo.

Esperava-se a obra de combate,  e  eis aqui uma de refúgio. Se não se trata aqui de Visconti guerreiro, mas do Visconti sonhador, como não seria “negativa” esta reflexão nostálgica sobre a juventude e a felicidade, ainda mais quando ancorada sobre uma forma de fraqueza que se orna com lantejoulas esplêndidas? Pensamos aqui no que escreve Marker sobre Montherlant, em seu ensaio sobre Giraudoux: “... o drama da fraqueza. Defendemo-nos dele, desconfiamos, acusamo-lo de espírito de contradição, de paradoxo fácil- e, no entanto, a evidência permanece”.
Esta fraqueza, esta privação que se mingua sob a vertigem da suntuosidade, é a complacência de que falamos mais acima. É o sonho, que consiste na forma mais íntima da complacência, “um esgoto de água clara, mas um esgoto”, dizia Reverdy. O instante perigoso onde o criador fecha-se sobre si mesmo ; não se trata de denunciar, mas de constatá-lo. Quem saberia dizer se ao fazê-lo ele se distancia de nós ou se aproxima? 

Formalmente, isto se traduz por um inevitável auto-pastiche: depois de Senso, Il gattopardo beira o academicismo. E também é verdade que as referências pictóricas se inclinam às vezes mais para o lado de Winterhalter que de Manet. No entanto, olhando melhor, esta sensação de academicismo, esta plástica “decadente” encontra, por meio das graças da tela larga, as concepções de espaço mais modernas, mais inesperadas: podemos pensar em um Tobey nos planos gerais, nestas telas onde o olho erra livremente, sem ser capturado à primeira vista por um detalhe em particular. O rigor da composição não impede a observação detida ( regardeur); retomando uma palavra célebre de Duchamp: de fazer o quadro. É uma das maneiras que o filme possui de ser aberto.
Mais longe, ou nem tanto assim? O “nem tanto assim” porque Visconti não ousou nos falar em primeira pessoa ( Mas poderia?).

Pois estávamos no direito de esperar, depois da perversidade suprema de Il lavoro ( talvez sua obra-prima), um príncipe mais maquiavélico, uma obra mais eficazmente crítica, enquanto que a crueldade natural do autor, que deveria esmerar-se em tomar Don Fabrizio como objeto,  com exceção de alguns arranhões sem grande alcance, poupa-o quase que totalmente,  e se esgrime pelo contrário com prazer sobre os personagens secundários. É que Visconti não soube ou pôde optar nem pelo distanciamento nem pela confissão: entre estes dois termos, a obra se desdobra, pendente ora para um ora para outro. Nesta alternância ( e nos revemos novamente do lado de Montherlant), lemos o dilaceramento do autor e aquilo que sem dúvida constitui sua sinceridade.
A esta altura, aquilo que é baixo ou mesquinho, as notações exageradas até a caricatura, não são agressivas, mas defensivas. A psicologia cede o lugar à parábola. Permanecem a tristeza e a solidão. A partida de Tancredi no início do filme não é um início, mas um fim, uma primeira morte ( na própria mise en scène), menos uma esperança que um rompimento. A ternura persistente do Príncipe por seu sobrinho, portador de uma infâmia cada vez menos posta em dúvida, é a ternura para com um sonho que nos recusamos a ver estilhaçado; Il gattopardo, assim, descreve-nos a história  de uma cegueira sob a aparência terrível de uma lucidez resignada.
A partir daí, não é mais uma história o que Visconti conta; é um estado de alma que ele pinta. Daí a importância, pelo fausto como pela duração, da cena do baile, uma verdadeira audácia de construção onde a narrativa se interrompe  para dar lugar à descrição nostálgica das relações do Príncipe e de seu meio, à tomada de consciência de sua morte e à sua solidão. Na hora da sopa, os malvas e os verdes ensombreiam-se até o limiar do luto, e as lágrimas do leopardo, na manhã que surge, são o signo físico da lassitude que até então conseguia se ocultar sob a magnificência um pouco lúgubre destes rituais de uma classe condenada.
Vemos o que a fúria meticulosa de Visconti “desvela”: se é preciso encher os frascos com perfume verdadeiro, ou se são aristocratas autênticos que figuram na cena do baile, isto só serve para fugir ao essencial, em um delírio da verdade louca demais para não dissimular a mentira.  Em virtude disto, nesta busca desesperada do artista, é sua mentira que é preciso amar, sob pena de não mais ouvirmos sua voz, e de só vermos os reflexos. 

Jean-André Fieschi, Cahiers du cinéma, 146

Tradução: Luiz Soares Júnior.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

De uma Índia a outra




Elle, défunte nue dans le miroir, encor


Que, dans l’oubli fermé par le cadre...



( Mallarmé).




Anne-Marie Stretter...Michael Richardson...A mendiga de Savannakhet...o vice-cônsul da França em Lahore...os leprosos de Shalimar...Impossível não ceder ao charme, à volúpia, à música das palavras e do espaço imaginário construído com esta fantástica economia de meios na qual Marguerite Duras é especialista. A música, o perfume, o sonho de que estes nomes estão prenhes, e a data, 1937. Vejamos: mas em que consiste este charme? A Índia branca, 1937. Acrescentem à música, à poesia dos nomes a imagem admirável de Bruno Nuytten, os figurinos ( Cerruti 1881) de Claude Mann, Mathieu Carrière, etc, estas magras silhuetas brancas, estes fantasmas vestidos de linho, em smoking de verão, em roupa de festa, cuja imobilidade ou as lentas evoluções fixam com dificuldade uma história vaporosa como o incenso, incerta como o crepúsculo sobre o delta do Ganges, vibrante como o ar no calor tropical. Mas sim, é claro, isto salta aos olhos: a moda rétro!

Demoremo-nos um pouco sobre a moda rétro.  Rétro quer dizer nostálgico; portanto, pouco ou o bastante, reacionário. O filme de Marguerite Duras seria portanto reacionário, seu efeito principal seria o de dar um corpo a este tipo de nostalgia que adquirimos o hábito de designar com o termo ‘rétro’? Mas de fato, nostalgia do que na moda rétro?
De um gozo ( jouissance); do gozo dos senhores ( maîtres), ou seja, de um excesso de gozo ( plus de jouir) absoluto. Eles eram belos, eram racistas, etc- mas sabiam viver. O que significa este discurso, senão isto: nós que não o somos- que não somos racistas, belos-, ou que o somos com má-consciência (portanto, com um déficit no gozar), nós perdemos desde então uma certa inocência, uma certa voluptuosidade, uma certa “arte de viver”- arte de que nos cabe o despojo: “aquilo que nos resta deles”, este ersatz provisório, Gold Tea. Em sua cor ambarina, seu gosto defumado , sua frescura, vocês vão reencontrar alguma coisa deste objeto perdido.

India Song mimetiza inegavelmente este discurso, esta sedução de um excesso do gozo anterior à descolonização, de que Jean-Pierre Oudart nos indica aliás a referência histórica: feudal.
Acresçamos de nossa parte uma conotação hegeliana:  belos e racistas, eles ( os Sulistas, os SS, etc) deveriam desaparecer , historicamente falando. A moda rétro designa neste sentido seu público como servil ( diremos mais simplesmente: pequeno-burguês), na medida em que esta não representa jamais o gozar do mestre, o gozo do senhor, sem mostrar ao mesmo tempo a sua morte : Lacombe Lucien, Porteiro da noite ou ( com algumas variantes), Chinatown. Eles estão mortos, vocês estão vivos, e entre eles e você só resta- não resta nada além ( ó sedução, deusa do marketing!) desta imagem de paraíso terrestre, estas bijouterias sujas de sangue, ou de forma mais diretamente intercambiável uma pequena garrafa cheia de gasosa com chá: se os filmes rétro são sempre trágicos, eles possuem também sempre- e  o mérito do pub Gold Tea consiste em mostrá-lo- uma competência cômica secreta.

Em certos sentidos, India Song obedece bem a este esquema; obedece até um pouco bem demais, até a caricatura e a paródia. Este lado “forçado” vem evidentemente da técnica de mise en scène- ou seja, estes planos longos, esta interpretação hierática e sobretudo na disjunção entre imagem e som, do campo e do fora de campo.
Sublinhei em outro texto o efeito de estranheza da voz off no sistema de uma ficção. Ele é, em um certo sentido, pelo menos duplo: por um lado, estas vozes múltiplas que povoam o espaço off e o animam ( descrevendo, sugerindo por intermédio de pequenos toques eficazes, o odor de morte do incenso, a bruma violeta do delta do Ganges..), estas vozes que nenhum rosto sobre a tela fixa jamais, e que ora pertencem às figuras que assistimos evoluir, ora a personagens invisíveis e não-identificáveis, ora a ninguém ( “vozes intemporais”); estas vozes mescladas compõem uma trama frouxa e rasgada de palavras e de frases, uma fuga de palavras e de frases, sitiando como fumaça ou vapor de incenso  as lentas silhuetas que o cadre fixa. A sensação de lentidão, de torpor tropical, de ociosidade colonial se encontra intensificada. Por outro lado- ou antes: de forma complementar-, esta imagem privada de voz, de son, estes sons, esta música, estas vozes que erram na indeterminação do fora de campo, marcam a narrativa com uma espécie de fissura, introduzindo entre ela e os espectadores um tipo de tela suplementar- a tela do passado, já que estes corpos, estes rostos jamais se exprimem de viva voz. ( No cinema, a voz viva é necessariamente in, jamais off). Muito mais que em Céline et Julie, penso aqui em Invenção de Morel: são os mortos, os fantasmas, os traços, sem outra consistência que não a de fosforescências, deslizantes diante de nós.

Portanto, teríamos aí o dispositivo de um drama hegeliano-rétro: gozo e morte dos senhores ( no caso: de uma casta da grande burguesia colonial). Falta, no entanto, uma dimensão essencial:  a seriedade histórica, este espírito de sisudez histórica que se reflete nos filmes rétro a través do realismo da mise en scène. Há sobretudo na narrativa aqui alguma coisa a mais, que modifica completamente o quadro. Esta coisa suplementar pertence à ordem do dejeto, mas não do dejeto de um “excesso de gozo”, conversível em valor de troca e representável, do tipo “aquilo que nos resta deles, Gold Tea”.

É justamente o dejeto da representação, o irrepresentável. É também a isto que serve o espaço off em India Song: para inscrever a assombração de alguma coisa que não se deixa reduzir pela representação, pelo discurso histórico, pelo trágico. Há, portanto, em India Song, alguma coisa que, parece-nos, não tem nada a fazer narrativamente na quase ou pseudo-narração dos amores e do suicídio de Anne Marie Stretter, mas que vem transversalmente fantasmagorizar e secretamente modificar a narrativa. Esta ‘alguma coisa’ é por exemplo o canto da mendiga de Savannakhet, ou a evocação dos leprosos de Shalimar pelo vice cônsul de Lahore, e talvez seja também o grito, o amor, a loucura do homem de Lahore.

A mendiga, os leprosos, não são de forma alguma os servidores, os trabalhadores que esperam pela morte dos mestres. Sem dúvida, evocam o Outro, mas não o Outro dialético, ligado de forma contraditória ao Uno e destinado pela História a ocupar o lugar deste ( Senhor). Completamente fora de campo, eles são completamente estrangeiros, completamente estranhos. A mendiga, os leprosos não trabalham. Parasitas e dejetos sociais no mundo real, eles são aqui literalmente os parasitas e dejetos da narrativa.
Eles não trabalham, não possuem o status legal de dominados: senão não estaríamos distantes de uma clássica ficção política e de uma clássica mise en scène das contradições de classe. Mas o que fazer dos leprosos de Shalimar e da mendiga de Savannakhet? ( É claro, o enquadramento marxista-leninista funciona também para eles: os lumpen. Mas cada um sabe o que são as categorias nevrálgicas do marxismo leninismo). O que fazer do canto ininteligível do Outro? Em Nathalie Granger, o livro, Marguerite Duras opõe, em uma pequena nota no rodapé da página, à clássica noção de violência de classe aquela, impensável, impossível, de uma classe da violência.

A violência de classe pertence ao domínio do possível e do pensável, na medida em que ela constitui-se no meio por intermédio do qual a História avança: esta violência é feita, historicamente, hegelianamente, para ser enquadrada, canalizada, subordinada e “ultrapassada” ( pelo Partido, pelo Estado “do povo inteiro”). Ela consiste em uma figura ardilosa ( rusé) da Razão. Mas em se tratando de uma classe de violência, de que espécie de classe pode se tratar e a que classificação apelar? A violência, neste sentido, é precisamente aquilo que estilhaça toda noção de classe e todo espírito de classificação, toda paciência do conceito.  Uma “classe de violência” só pode ser uma classe parodicamente. “Classe” de intensidade pura, onde comunicam-se transversalmente, musicalmente, seguindo as amplidões de onda do canto e do grito, do grito cantado, do fora de campo, a mendicante e o vice-cônsul, e os leprosos nos quais ele atira ( e o silêncio de Anne Marie Stretter: há sempre um lugar para o silêncio nas ficções de Marguerite Duras). Não deixaremos de rir destas coligações ( as pessoas sérias, é claro). E, com efeito, esta é uma classe feita para rir, a dos leprosos, dos mendigos e dos vice-cônsuls.


Do ponto de vista do espírito sério, do trágico, da ciência e da História, deveríamos estacar aí e denunciar em Duras uma Vicki Baum ao mesmo tempo rétro e modernista. Eu prefiro ver outra coisa senão charme exótico na evocação dos mendigos de Shalimar. A questão dos leprosos e dos leprosários é com efeito a mais incendiária e recalcada do espaço ocidental desde a idade clássica ( Michel Foucault o nota o início de História da loucura: “Aquilo que vai permanecer por muito tempo além da lepra, que vai se manter numa época onde há anos os leprosários  estarão vazios, serão os valores e as imagens ligadas ao personagem do leproso. (...) Com frequência nos mesmos lugares, os jogos de exclusão vão se repetir, estranhamente semelhantes dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos,  objetos de correção, alienados tomarão o lugar abandonado pelo leproso...”). O leprosário é o modelo arquitetural de nosso mundo. A ficção de India Song: um leprosário nômade, com fronteiras móveis, com limites flutuantes, que traça a comunidade no gesto de exclusão com que se constitui.


Pascal Bonitzer, Cahiers Du Cinéma, 258-259


Tradução: Luiz Soares Júnior.