quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Fortini cani: Ali





Te enfurnes no aqui e agora, por meio dos quais o futuro mergulha no passado ( James Joyce).

Há um ano, alguém perguntava a Straub porque, ao fim de Einleitung, depois das duas cartas em que Schoenberg vitupera Kandisky por seu anti-semitismo, depois do texto de Brecht relacionando o nazismo à história da luta de classes e das relações de produção capitalistas, ele não havia mostrado- ao invés de bombardeios americanos no Vietnã-, aviões israelenses no Sud-Liban. Straub respondeu que havia pensado um momento, que depois tinha-se recusado a, que este seria o assunto de um outro filme. Muito simples e muito fácil, dizia ele, para terminar a coisa onde esta havia parado ( boucler la boucle), simples demais e fácil demais para perfazer uma demonstração, muito mecânica e confortável, “a dialética” das vítimas se transformando em carrascos.

Fortini/cani é este outro filme, a terceira parte, depois de Moisés e Aron e Einleitung, do “tríptico” judaico de Straub-Huillet. Mas também, e necessariamente, por ser a última parte do tríptico judaico, é aquele onde vem convergir e se implicar de outra forma todos os fios que tramavam os ensaios anteriores: o fascismo e o racismo- antes: os racismos-, as segregações de que se sustentam as sociedades civilizadas, os neo-facismos sob a cobertura democrática, mas também o livro e o ato de enunciação, a questão do lugar e da memória, o romance familiar, a diferença, a história...
A História, este último fetiche. Fala-se muito disto nos dias de hoje. Incríveis, a proliferação, a inflação, a supersaturação de discursos sobre a história. Não há revista nem magazine que não venha com seu “cinema e História”. Nenhum colóquio, seminário, de festival ou simpósio um pouco sério que não se inscreva em seu programa. Todo o mundo, espantosamente, está de acordo: sobretudo nada de História para nada, que a História sirva às lutas atuais, viva a memória popular, abaixo o rétro, reapropriemo-nos nosso passado, etc. E aqui vem se empenhar os pequenos mestres, os Bertolucci, os Cassenti é claro, mas amanhã cem outros, administradores dos bens dos mortos, dizia Michelet, pretendentes à herança, novos gestores: eles foram como nós, eles nos prefiguram, portanto nós os realizamos...virulência em preencher as brechas, em completar aquilo que é buraco, a recolher os fragmentos disjuntos, a recobrir os pontilhados, ilusão paranóica de que a verdade possa totalmente se dizer, que possamos proferir o verdadeiro sobre o verdadeiro. Raras vozes discordantes no concerto; Godard: “Nada de histórias!”; Straub: Não esqueçamos o esquecimento”. Que ganhamos por um lado na História, dizia Lacan, perdemo-lo no outro, apenas; como não sabemos aquilo que foi perdido, cremos haver ganho. Eis o quadro para os pequenos astutos. Os outros, os idiotas, os trouxas, Godard, Straub trabalham a partir desta pequena seca implicada no ganho, do oceano do esquecimento onde flutuam alguns retalhos de memória. O que diz o velho Kominternien em Número deux? “O Pc , ele só vem dali, mas também daquele ali...E isso, ele não dirá jamais... é por aqui a saída”.

Há, em Não-reconciliados, uma cena que ilustra a questão deste esquecimento na memória: Schrella, resistente anti-fascista exilada, entra na Alemanha; ele volta para seu antigo bairro, e não reconhece nada nestes terrenos baldios, estes novos imóveis. Ele pergunta a uma menina se uma família Schrella não habitava ali outro tempo. “Não, não os conheço...”Anulação, incineração, desaparição, passagem dos traços de passos ao nada de traço ( de pas au pas-de traces) ou ao pouco de traços. E o gesto do cineasta: marcar com um traço ou circundar de um contorno, um quadro, este pouco ou nenhum traço restante. Trabalho, portanto, de terceira mão. Os “cinemas-e-História” contentam-se com uma ilusão referencial: como se fossem, som e luz, efeitos de real.
Por que, nos filmes dos Straub, estes buracos, estas síncopes, estas ausências de narrativa, senão pelo fato de que eles são homogêneos a seu objeto: a história, a história que não é o passado. Eu quis construir Não-reconciliados como um corpo lacunar, declara ele, ou seja, segundo Littré, um corpo composto de cristais aglomerados, deixando entre si intervalos. E, bordando estes intervalos, como cristais, as inscrições petrificadas e medusinas de que falava Bonitzer em J.M.S e J.L.G. Nas imagens de Fortini Cani, não há nada além disso: inscrições lapidares, lugares de memória, farrapos de tempo na pedra, as paisagens, os monumentos, os ossuários. E cada plano, como é dito a propósito de Crônica de Anna madalena Bach, é ele mesmo uma pedra.

Ausência total de evocação histórica, de “tableau” de gênero, de índices ou insígnias de época. Mas no entanto nada de mortificante, nada da meditação sobre o esquecimento altaneiro e desencantado, crepuscular, de um Resnais em Hiroshima, Toda a memória do mundo, Noite e neblina, e mais ainda Providence. Aqui, nada possui lugar senão o lugar- a referência a Mallarmé não é casual, e voltarei a ela. E da mesma forma como Godard, transversalmente à questão do aqui e do ali ( ici et ailleurs) , desenvolvia uma interrogação sobre o tempo- tempo das cadeias, tempo do capital, tempo de uma imagem cinematográfica, tempo de tomar seu tempo-, Straub em Fortini Cani, a partir da questão de hoje e de outra época ( autrefois), que foi sempre seu tema ( o que tal ser ou tal viraram?) prossegue com uma pesquisa meticulosa do lugar. Ele barra os discursos da História proferidos por Fortini de inscrições condensadas, insistentes, de abreviações de tempo; placas comemorativas, monumentos aos mortos, nomes de ruas, percurso da Torá durante um ofício, traço oco de um triângulo maçônico arrancado em outro tempo pelos fascistas, com o A de anarquistas circundado por um círculo visível ainda hoje ( é sem dúvida neste plano que melhor podemos ler a tripla operação de que eu falava há pouco: traço, desaparição do traço, e o ato do cineasta como comemoração dos dois). Os filmes de Straub: um fluxo de palavras fixadas sobre as pedras ( metaforização no último plano de Lições de história: a água da fonte romana escorrendo interminavelmente de uma máscara de pedra). Nada o demarca melhor do que este enorme buraco no discurso marcado pela sequência dos Alpes Apouanes, onde a câmara não pára de fixar paisagens um pouco perturbadas por alguns ruídos de motores distantes ou por alguns gritos de crianças, não acaba nunca de fazer panorâmica sobre carreiras de mármore. Straub topógrafo, geógrafo, desenhista de mapas, agrimensor, técnico dos aluviões do terreno. Aquilo de que se trata é de fabricar filmes discretos e mortais, como estas “pequenas obras certas, de sílex ou de diamante”, de que Fortini fala no último plano.

II

Mas há este fato que é o livro, do livro de Fortini de onde vem o filme, e todos estes planos onde vemos Fortine ler, ou se reler. Então, advém as eternas questões colocadas aos filmes dos Straub: o que acrescentam aos textos pré-existentes, onde se sustentam todos? O que esta aporta ao cinema e a estes textos ( peças de teatro, cartas, fragmentos de jornais, óperas, romance, ensaio), ao filmá-los, fazê-los ler, integralmente ou em parte, recitar, declamar, jogar, cantar, sprechgesanger, ou cuspir, deglutir, expulsar, martelar, vomitar? Será que eles não são suficientes a si mesmos? Onde está o “próprio” do cinema aqui? E se for realmente do cinema, quem comanda, a imagem ou o som? Trata-se de fazer imagem, de ilustrar, de figurar o escrito, ou antes de comentar, de acompanhar por imagens? De representar, de transcrever, de adaptar, de transpor ou de trair?
         
Falsas questões, de que nem Straub nem Godard jamais quiseram saber, jamais, e cada vez menos se possível fosse. Falsas questões que eles deixam aos integristas do “específico”, a quem respondem: tudo o que se lê, se anota, se respira, se canta, se dança, se cita, se interpreta, se rádio ou se teledifunde, se grava, pode para nós fazer um filme, à condição de se inscrever ali. Onde, ali? Neste lugar que não é outro senão o espaço de concentração-dispersão de tudo o que se pode escrever, se anotar, se respirar, se cantar, se citar, etc. É por isto que, neles, tudo já foi escrito e tudo é ainda novo, nada é “original”, “inventado”, e no entanto nada preexiste ao ato de inscrição. O que suscita nos Straub este aparente paradoxo: que uma das artes mais elaboradas que existam possa ao mesmo tempo se expor inteiramente aos acasos.
Tudo é possível na filmagem, declara Straub. É neste sentido que seu “respeitar o real”, seu empenho em “mostrar” não é metafísico: o ‘dado a ver’ guarda sempre a pegada do gesto designador; índex, punho ou cepo, doando o ali. Há em seus filmes uma inalterabilidade mineral, mas também algo de precário, como uma transparência trêmula do ar, quase audível, durante os verões italianos.     

Qual o passo melhor realizado com Fortini cani? Ele faz entrar no filme, ao mesmo tempo que o livro ( I cani del Sinaï), o autor deste livro. Nem São João da Cruz, nem Bach, nem Anna Maddalena Bach, nem Corneille, nem Brecht, nem Schoenberg estavam presentes em persona nos outros filmes, e não apenas por razões de morte, aliás. Straub explica que, desta vez, o filme não teria nenhum sentido sem a presença de Franco Fortini, na iminência de ler ele mesmo os fragmentos de seu ensaio, ensaio que aliás vimos no primeiro plano do filme. Eis o que nos leva a compreender melhor a estratégia do cineasta em relação ao escrito onde se sustenta o filme, que permite que não nos perguntemos mais o que pode ser um filme tirado de um escrito preexistente, nem mesmo aquilo que obtém. Vemos pelo contrário que aqui é a própria máquina fílmica que tira o livro para ela- e o autor com ele-, que os faz vir a ela, que os absorve. De maneira que a questão de saber quem veio primeiro, ou quem o domina, do texto ou da imagem, e se uma ilustra o outro, ou o outro comenta uma, não possui mais grande sentido. Ao mesmo tempo, o texto de base e seu autor são inscritos no filme como partes, ao lado de outras partes, não antes nem depois ( as paisagens, a música, os extratos do jornal da R.A.I, as margens do Arno, a sinagoga de Florença, o diário de Fortini, etc). E mesmo inscritos em parte, já que aparecem em primeiro lugar o livro, depois a voz, depois as mãos de Fortini, e seu rosto apenas- é muito importante- depois da enorme síncope dos Alpes Apouanes.

Há aí alguma coisa muito nova concernindo ao cinema no que se refere à relação entre parte e todo, onde não apenas as partes não formam os elementos de uma totalidade a vir, nem são emanadas por uma totalidade pré-estabelecida, mas ainda onde nem é mais necessário anular a totalidade, já que o próprio todo funciona como parte, de ser contíguo e conexo às outras partes do filme. Relação de envelopamento recíproco e de torção que liquida as questões de anterioridade, de primado ou de  fundamento. O filme integra o que o sustenta, não existe nenhum elemento que não seja inscrito/inscrevente, como nestes nós borromeos onde, de três linhas, nenhuma se encontra recoberta pela outra sem ser ela mesma envelopada em relação à terceira. É preciso assinalar aqui que o filme não possui título ( Fortini/Cani é um título “no ar”, jamais inscrito enquanto tal no filme), e o que faz função de título é já o primeiro plano do filme ( aquele onde se vê a cobertura da capa de I cani di Sinaï). Há aí uma similitude intensa com a operação de escritura do Coups de dés, de que Mallarmé dizia que era a continuação de uma frase capital introduzida desde o título,o envelopamento recíproco do poema e do que este sustenta. Aliás, e é a isto que eu queria chegar, Straub/Huillet vão “rodar”, na primavera, em Paris, o poema de Mallarmé.

Mas há ainda outra coisa além desta introdução no filme do livro e do autor, e  é o fato de que Fortini não é simplesmente autor ou ator, mas leitor. Fortini, autor do Cães do Sinaï, é filmado na iminência de ler em voz alta extratos de seu livro. Straub insiste sobre o caráter ficcional do filme; ele tem horror a que lhe perguntem de explicar antes do filme quem é, na realidade, este senhor Fortini. Ele consente no máximo a dizer que se trata de um comunista, um ponto basta, e  veremos ao final do filme de que tipo de comunista se trata; ele quer que para o espectador não há nada no filme senão um ator, um personagem de ficção que vai ler, in ou off ( sobre ou sob imagens de que já falei) um livro escrito dez anos antes. Vemos muito bem o que uma reflexão moderna sobre a escritura, o texto podem tirar daí: o autor como produto de seu livro e não como fonte, o texto sendo parido ao final do percurso pelo seu próprio pai, a reversibilidade entre o escritor e o leitor. Há também o brechtianismo intransigente de Straub: a disjunção do personagem e do ator, a distância do ator ao que profere, a citação generalizada e não a expressão do texto. Mas o mais importante segundo penso não está mais ali: reside antes na introdução de uma potência de escuta, de uma colocação em jogo da pulsão invocativa.

“No cinema, dizia Godard por ocasião de Britsh sounds, vemos sempre pessoas que falam, jamais pessoas que escutam”. Muitas pessoas que falam em Straub, desde o início, que executam ou que se executam ( Gustav Leonhardt como ator interpretando o papel de Bach, mas interpretando realmente as obras deste diante da câmera, atores italianos, franceses, ítalo-ingleses simulando personagens de Corneille, mas realmente se confrontando com o texto francês). Personagens que não falam a ninguém em especial, convocando até o presente o espectador ao lugar instável de sua localização, dupla, de escuta e de olhar. Em Fortini/Cani, como vimos, há alguma coisa de outra: o autor entra no plano enquanto leitor, mas sobretudo auditor de um texto aparentemente único, mas por isto mesmo subitamente desdobrado. Pois o texto que ele lê e relê – e toda a operação consiste nisto- não é o texto que escreveu. Sempre a propósito do Coup de dés, Denis Roche notava que o mais importante no texto de Mallarmé não era o possível múltiplo, a pluralidade de planos de leitura ou a proliferação dos níveis, mas a ideia de um texto se retornando contra si mesmo na leitura. Cães do Sinaï ( que aliás não existem) adestrados contra si mesmos na leitura. Linha de fratura cindindo o texto único, intuição extraordinária do texto judaico enquanto este é reconduzido a seu limiar, a seu deserto, ao limite jamais transposto da “Terra prometida”, duas vezes começada, escrita, lida: “Os olhos em todo tempo não querem se fechar”, era o subtítulo do filme Othon. Mas a orelha, esta, sempre escancarada, não o pode em tempo nenhum. Se a pulsão de escuta, pulsão invocativa, pode se formular segundo Lacan como um “se fazer ouvir”, onde se encontram equívocamente mantidos em primeiro lugar a aceitação intelectiva corrente da fórmula, depois o “fazer” da atividade própria à pulsão, enfim a dimensão de apelo e de prece implicadas na palavra “invocante”-, podemos dizer de Fortini/Cani que é um filme onde o espectador vê alguém na iminência de se escutar falar. Mesma estratégia, segundo vias opostas, usada em Nous trois ( Six fois deux), onde o prisioneiro torturado se ouve escrever no silêncio de seu inexistente segredo, e em Fortini/Cani onde, minando o fluxo incessante da leitura em voz alta, escutamos o murmurar mudamente a questão de Fortini a si mesmo: “o que é que você entende por ‘ali’”?

Straub e Huillet insistem: contrariamente ao que se passava com seus outros filmes, eles não quiseram ensaios, seções de trabalho/leitura com Fortini antes do ato de filmagem. O importante é que Fortini se encontra confrontado, dez anos mais tarde, a um texto de arrebatamento e de polêmica lançada no combate por ele mesmo no dia seguinte da guerra de junho de 1967. O que se dá então a experimentar não é apenas “o prazer do texto”, ligado à escritura em voz alta que concerne Barthes ( referindo-se sem o dizer a Othon: prazer do grão da voz, voluptuosidade de seu som captado de muito perto, mas o efeito sobre o personagem escutando-se a si mesmo, do escutar-se falar: de espanto, de estupor, de não-reconhecimento, ou de adesão e de já ouvido ou o contrário, provocando então efeitos de discreta ênfase, de acentuação oratória, de visível auto-aprovação. Repetição na cena fictícia desta questão do trabalho do esquecimento na memória de que falava mais acima. Anamnese implacável de um romance familiar, melodrama como dizem muito seriamente Straub-Huillet, onde o filho se confronta com o pai, a todos os pais e os pares de seu pai. Filme de amor, como sempre com eles: tu não falas jamais de onde eu te escuto. Romance familiar, mas sem confinamento, sem estreiteza ( “a lei do sangue não é a boa”, diz um dos personagens de Não-reconciliados), porque sempre ao mesmo tempo romance histórico, conectando os heroísmos, as abjurações, covardias, e conversões individuais sobre a cena múltipla dos afrontamentos de classe, das histórias nacionais, das lutas de liberação dos povos, dos mecanismos de poder e de resistência, das discriminações raciais ou não raciais.

Sempre, se fosse preciso designar, o mesmo inimigo dos inimigos para os Straub: o humanitarismo de encomenda, como lá diz o outro, com que se vestem nossas exações ( a infame passividade ou a cumplicidade ocidental diante do anti-semitismo nazista ontem, e o mesmo humanitarismo que pretende nos dias de hoje proteger os Judeus contra as barbáries árabes. Como em Não-reconciliados, há em Fortini/Cani um grande tema, aquele que Kafka designava como “a depuração do conflito que opõe pai e filho e a possibilidade de discuti-lo”; depuração, conflito a se entender não como fantasma edipiano, mas como programa político.

Jean Narboni. Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, número 275, 1977

Tradução: Luiz Soares Júnior



Notas:

1 “Evidentemente, cada imagem só é realidade, e nada mais, “uma pedra”, é claro”. Sobre Crônica de Anna madalena Bach, Cahiers du cinéma, 193, página 58

2 No momento de Nicht Versohnt, alguns críticos saudaram em Straub um “novo Resnais”. A comparação foi deste então retomada, se bem que a cada vez com menos freqüência, em nome de um certo número de traços aparentemente comuns aos dois cineastas: intransigência moral, afinidade com as questões da memória e da perda, do fascismo e do lugar, ou mesmo a vocação a construir narrativas deslocadas. Ora, não há, em minha opinião, cinemas menos semelhantes que estes dois. A comparação merece ser retomada, no entanto, nem que seja para marcar de que tipo de cinema ( por oposição a outro), nós nos distanciamos decididamente mais e mais no Cahiers. Em priemiro lugar, no que se refere ao “deslocamento da narrativa”, Straub mesmo respondeu: “Nicht Versohnt é construído como um corpo lacunar, ou seja, alguma coisa que não tem nada a ver com um puzzle. Mais profundamente, encontramos no cinema de Resnais ( com exceção, talvez, do admirável Muriel), mais ou menos todos os elementos estruturantes, segundo Freud, da maquinaria obssessional: “O animismo, a magia, e os encantamentos, a super potência das ideias, as relações com a morte, as repetições involuntárias e o complexo de castração...( em A inquietante estranheza: Unheimlich). Daí a angústia que emana da obra, e que ele suscita ( levada ao seu mais alto nível em Providence). Em Straub, pelo contrário, e apesar da dureza, ou mesmo do horror dos temas abordados, há uma espécie de profunda alegria. É que o trabalho de esquecimento do luto não tem nada a ver com a paixão pelo cadáver: o primeiro é alegre ( gai), o segundo não.

3 Não acabaremos jamais de identificar, em Straub, em todos os níveis, os índices desta questão de lugares de memória: da gruta de Othon, onde os resistentes anti-fascistas dissimulavam suas armas ( verdadeira fresta de memória- trou à mémoire) à enquête em Lições de História do jovem rapaz mergulhando no coração de Roma para reconstituir a genealogia da City, sem esquecer a dupla inscrição que designa a última réplica de Nicht Versohnt ( cito de memória): “Ele não foi mortalmente ferido, mas eu não esquecerei jamais a impressão de estupor que pintou-se em seu rosto”.

4 In “Eros Energúmeno”, Ed. Du Seuil, col. Tel Quel, p.14

5 In Le plaisir du texte, Ed. Du Seuil, col. Tel Quel, p.105

6 É assim que Deleuze e Guattari recomendam-nos ler todo o Kafka in “Kafka: para uma literatura menor”, Ed. De Minuit, p. 31

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O sargento negro, por Jean Douchet



Ao permanecer fiel a si mesmo, John Ford torna-se novamente um cineasta de vanguarda. Semelhante permanência nos temas e na escritura conduziria qualquer outro ao academicismo. Mas a juventude de seu coração, e sobretudo uma fé profunda e intacta em uma tradição preservam este autor da secagem das fontes. Não há em sua obra um único ensaio de renovação. O sargento negro poderia ter sido filmado em 1938, ao mesmo tempo em que No tempo das diligências. Ele não aporta nada mais. Mas é tão belo quanto.
Reencontramos no filme os personagens caros ao autor: o coronel amuado, o jovem tenente intrépido e as mulheres cacarejantes e deliciosamente ridículas. O humor é rijo, tônico e “simpático” ( bonhomme). Nada aqui é complicado. Um sargento negro, logo após a Guerra da Secessão, vai para uma corte marcial. Acusam-no de dois assassinatos e do estupro de uma Branca. As testemunhas desfilam diante das barras do tribunal. Por uma sucessão de flashbacks, a verdade vem à luz. O sargento negro aparece-nos como um soldado de honra e um verdadeiro homem. Seu defensor, o jovem tenente, defende-o calorosamente. A verdade finalmente advirá perante todos, o assassino desmascarado.
A arte de John Ford é tradicionalista porque se funda sobre as virtudes dos simples. Virtudes, em nossos dias, esquecidas, ou mesmo desprezadas. É por isso que vários espectadores saíam deste filme rindo de suas ingenuidades, assim como de seus bons sentimentos. É bem evidente que Ford negligencia as sutilezas. Os refinamentos intelectuais o interessam menos que a nobreza do coração.
Seu estilo também não está ali para nos arrebatar. De um classicismo absoluto. Encontramos mesmo alguns arcaísmos, como este procedimento que consiste em obscurecer lentamente a sala do tribunal para anunciar um flashback. Tudo aqui está perfeitamente em seu lugar. As ações em primeiro plano respondem às que se desenrolam na profundidade de campo, como os planos americanos aos gerais. Um estilo sólido como rocha. Mas no interior sentimos o frêmito e a sensibilidade áspera do excelente artesão. E que admirável direção de atores! Um pouco pesada talvez, mas que sabe revelar com justeza admirável as reações exatas das pequenas gentes. Sabemos que Ford os conhece e ama, embora caçoe de seus defeitos.
E neste mundo de simplicidade onde este cineasta nos lança, não são os momentos melodramáticos os que nos transtornam mais. Mas antes certas imagens ingênuas ( naïves) , ou mesmo cromos. Elas adquirem subitamente no contexto uma força emocional extraordinária. Assim, certa imagem do sargento negro destacando-se orgulhosamente contra luz, enquanto vela por seus camaradas. É preciso redescobrir John Ford, cineasta ilustre e desconhecido.

Jean Douchet, Arts, número 794, do 2 ao 8 de novembro de 1960. Extraído de A arte de amar


Tradução: Luiz Soares Júnior

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O retorno do filme pródigo



Se Two Lane blacktop se demarca não apenas de alguns filmes precedentes, mas também da corrente onde flutuam- se revoca, por exemplo, a condição humana de Fat city não é porque ao esquematismo do filme de Houston ele oporia uma espessura mais generosa e melhor estratificada do vivido, mas porque recusa radicalmente a economia de acumulação destes filmes. Ele dilapida sua narrativa. Warren Oates de um lado, James Taylor e Denis Wilson de outra apostam em quem, no volante de um Pontiac novo ou de um funny car, antigo Chevrolet modificado pelas corridas de dragsters, vai chegar primeiro pelas rotas de corrida a Washington. Mas o fio da corrida é rapidamente perdido, e o duelo reduzido ao preâmbulo do desafio. Só permanecem a trama dos encontros, das expectativas e dos esquecimentos: uma cena submergida pelo acidental e pelo fortuito. A referência embaraçosa da finalidade cede espaço a um real que se desenrola infatigavelmente, cambiante, pródigo de si mesmo, a um filme sem fim. A ausência de toda fricção episódica conserva para o filme uma aceleração implacável que apenas pode ser interrompida pela destruição conjuratória da película, a abolição simulada do suporte.

Esta densidade vem também de uma abundância estritamente técnica. A competição automobilística parece ser aqui assunto de iniciantes, os únicos capazes de apreciar o ritual do topfuel, a água de Javel desperdiçada para limpar os pneus, as referências estroboscópicas sobre os volantes airados; os sinais, improvisados ou não, dos protocolos de partida, onde os carros avançam ou recuam por sobressaltos bruscos. Mas estes detalhes evitam tanto a preguiça dramática quanto o folclore; eles não são os motivos ou os acessórios de um encadeamento aristotélico, mas uma estranha moeda. O seu esoterismo relativo leva-os a aceder a uma autoridade significante, onde a satisfação do conhecedor e o ressentimento do profano lutam com armas iguais. Em um filme onde não circulam apenas automóveis, mas as opiniões, os amores, as armadilhas e os encontros, eles favorizam um comércio desregrado onde a multiplicação dos signos não é o objeto de uma troca, mas de um tráfico. A enumeração não compra a cumplicidade do espectador, mas lhe sublinha a estranheza da Verfremdung ( Alienação). O espetáculo elide seus resultados. Estas peças, ao ocultar tão cuidadosamente seus golpes, seriam peças falsas? O diálogo cruza duas linguagens semelhantemente pletóricas e semelhantemente aberrantes. Taylor e Wilson abusam de um vocabulário , de uma sintaxe e de um estilo, no sentido próprio: mecânicos, e que são a equivalência verbal da insistência técnica das peripécias, tão intolerável que se deixa absorver em uma paródia de silêncio. Warren Oates, este papagueia como um perfeito mitômano. Ele só pega os passageiros para reconduzi-los ao espanto, seduzi-los ou desfazer-se deles à força de um bluff. Soldados, velhas senhoras e pederastas, cada um tem seu direito a um refrão de cabotinagem, de hipocrisia ou de vexatório desprezo, de que o imaginário só livra uma boa vontade veemente e frustrada. Aqui também o “pleno” imita o vazio: ele provoca, mas desencoraja a resposta. Este discurso reproduz as rotas do cenário. Ele constitui-se na via de uma circulação alucinada e obstinada. A palavra é deteriorada  pelo significado; ela se anula, na busca obstinada de sua própria transparência. Two Lane blacktop é um drama do anonimato. Os personagens se designam, mas sem se interpelar. Eles se chamam pelos sobrenomes, mas não possuem um nome.


Um irreparável estilhaçamento

Esta estranheza, onde colaboram o fracasso das peripécias e a morte do diálogo, é muito próxima do patético. Uma carta do Tendre 1 lunaire se fende, sob a força de tensões, em um irreparável estilhaçamento. A história de amor é de forma clássica: Laurie Bird, a caronista, passa de um carro a outro, antes de abreviar toda esta divagação e fugir, livre. Ora, este classicismo não é contrariado por uma subversão temática, e também não explode sob a pressão interior do sentimento. Ele não se rasura porque instala-se na própria cratera da narrativa, ali onde os eventos perdem seu sentido e onde a palavra gira sobre o vazio e se fissura. O amor se constrói, e portanto se desfaz, no seio desta recusa. Quando Taylor, para se declarar, conta à jovem impossíveis histórias de termitas ( cupins) ou então a ensina a conduzir em vão; quando Oates, por seu lado, desempenha seu papel de protetor e lhe oferece férias quiméricas, eles não colidem contra a sua indiferença, mas escutam, amplificado, o eco de seu próprio silêncio. A emoção não é o fruto da identidade e da presença, mas igualmente o contrário da dessemelhança e da Distância. Ela se confunde com uma nostalgia discreta, como neste último plano onde passa, solitário, o cavalo do western.


Louis Seguin, A crítica dispersiva; A lei, a utopia

Tradução: Luiz Soares Júnior



 Nota:

1 https://en.wikipedia.org/wiki/Map_of_Tendre




quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Os dois rostos de Faces



1. Em torno do vazio.


O tema de Faces são os rostos, portanto a inquisição de uma câmera mais que atenta perscruta sem parar os menores declives. Rostos que se transformam em “caretas”( a palavra ‘faces’ em inglês tem os dois sentidos) , quando a mobilidade dos traços se fixa em expressão ridícula ou dolorosa. Dos personagens destes rostos não se sabe grande coisa, pois nada mais é interrogado senão aquilo que se pode ler justamente inscrito neles: excitação, desejo, fadiga. Não se trata de forma alguma aqui  de estados de alma intensos, nem de psicologia em filigrana ( desta razão advenha talvez que não se possa conceber o filme senão como 16mm inflado).
Daí venha também a impressão suscitada pelo filme de ser uma enquete meticulosa, e que no entanto não capta nada; que gera o aparecimento , em vários momentos súbitos, de efeitos violentos ( divórcio, suicídio), sem que de forma alguma a sutileza dispensada pelo filme permita que estes momentos sejam explicados. O escândalo é tal que o espectador tem a impressão de que faltam cenas, em particular a do suicídio- como? por que?
A nossos olhos, a beleza do filme de Cassavetes consiste em nos fazer sentir este mal do cinema- a impotência que lhe cabe de direito de explicar a interioridade, uma vez que não captura literalmente senão signos exteriores; esta incapacidade talvez não seja isenta de parentesco com os próprios males que se urdem secretamente na interioridade. Como se o próprio silêncio que lhe foi relegado por todo cinema honesto fosse o lugar propício de onde emana qualquer grito, silencioso pelo eco de seu próprio vazio.

Como os filmes de Godard, Straub, de Lefèbvre, Faces é um grande filme do vazio, dilacerante por ser ao mesmo tempo vertiginosamente exterior e bordejado pelos mais doentios domínios do “Dentro”. A saber, aqui o estado completamente “abandonado” ( paumé) do indivíduo americano. As diferentes vertigens, depressões, náuseas, delírios, preparatórios ou consecutivos à ebriedade que vemos no filme poderiam facilmente ser considerados como pudicas metáforas desta doença. Mas nada autoriza de forma literal semelhante generalização simbólica. Para nós, a grande beleza do filme vem antes de ter sabido servir-se dos efeitos do álcool- hipersensibilidade e hiperlucidez, enternecimentos e epifanias- a própria forma, titubeante e rigorosa, de sua poesia.

Sylvie Pierre, Cahiers du cinéma, número 205, outubro de 1968

Tradução: Luiz Soares Júnior


terça-feira, 30 de junho de 2015

O mal cadente



Esta espécie de raiva razoável, esta cólera refletida e metódica que define, desde os primeiros planos, um espaço radicalmente original onde, no entanto, cada um pode imediatamente reconhecer e identificar os demônios de sua própria adolescência- apesar do caráter deliberadamente excepcional da afabulação utilizada- impõe os acentos de uma contestação que sua violência e alcance inscrevem nos rastros de L’âge d’or e de Zéro de conduite: como Buñuel e Vigo, Bellocchio sabe fundir os argumentos de seu terrível acerto de contas no movimento de um poema dramático, e preservar por meio de uma constante ironia o que a tese poderia oferecer de excesso e desmesura. Mas ainda assim seria inutilmente restritivo limitar ‘I pugni in tasca’ a suas virtudes de denúncia como a suas qualidades poéticas. Assistimos à construção precisa de um mundo ao mesmo tempo em que são clinicamente desmembrados os sintomas de decomposição, doenças do corpo e do espírito. A constatação de ruína e de decadência que, através da família visada, tem como objeto a toda uma classe social, se interdita todo recurso a um simbólico romântico, negligencia toda sombra de nostalgia passadista, rejeita toda complacência em relação ao fracasso ou infelicidade; é unicamente pela análise dos comportamentos que Bellocchio organiza e reparte as significações gerais induzidas pelo discurso aparentemente muito particularizado que escolheu seguir. Assim, o caráter passional de sua reivindicação, ultrapassando o obstáculo individualista, cristaliza-se a partir de uma exigência de lucidez crítica pouco comum. E se escolheu abandonar seus personagens ao cárcere desta epilepsia ( haut mal) a que os antigos atribuíam virtudes divinas, é sem dúvida porque a epilepsia- de todas as doenças mentais com certeza a mais espetacular, a mais “teatral”- lhe permitiria unicamente tornar visíveis as crispações e opressões de um mal mais definitivo e secreto de que ela só constitui o traço evidente, a chifra poética: ou antes, a alternância características das crises e calmarias contribui para fazer de Sandro esta testemunha privilegiada de uma decadência de que ele é ora o objeto, ora o instrumento; ele, dentre todos, o ser eleito pelos símbolos contrários que o conduzirão ao abismo, o impossível ponto de encontro de uma extrema lucidez e uma extrema aberração. E jamais a dialética do carrasco e da vítima não foi mais imediatamente sensível senão neste possesso, que porta em si os estigmas de um segredo incomunicável e universal: o segredo de uma infância que é preciso queimar para tornar-se adulto e que, não podendo queimar, ele permite consumi-lo até o êxtase final, onde o surpreende a morte.

Mas o que faz a grandeza sem precedente desta obra de jovem é menos o domínio que lhe permite abraçar, como se jogasse, a totalidade dos mitos retransmitidos pela tragédia grega à toda dramaturgia ocidental, em nossos dias ainda viva; e mais a autoridade insolente com que leva seus personagens a realizar as transgressões mais inconfessáveis: aqui, o fascínio pelas condutas mórbidas não seria suficiente para justificar esta forma de vertigem que ressente o espectador diante da visão, meio horrífica, meio cúmplice do matricídio e do fratricídio cometidos por Sandro. O sentimento que se instaura então só pode ser comparado àquele que nos proporcionam certas páginas de Bataille ( O abade C., e sobretudo História do olho). Este sentimento, nos pareceria que o cinema ( de acordo com sua natureza), e apesar da força de certas transgressões buñuelianas, estava obrigado, se não a negligenciar ou ignorar, pelo menos a transpô-lo com maior ou menos grau de felicidade e de prudência. Ora, Bellocchio, com o chicote na mão, instala-o no coração de seu filme. Não nos enganemos: trata-se de uma agressão cujo alcance não se poderia diminuir ao reduzi-la a qualquer exibicionismo do atroz ou à exposição em uma monstruosa complacência. Muito pelo contrário: aqui, o cinema atinge uma dimensão de contestação até então insuspeitada; o que o filme fere profundamente não é apenas- o que o deixaria no nível do anedótico ou do pitoresco- a concepção burguesa da família ou a calamidade obscurantista de um cristianismo tarado. Não; o que Bellocchio coloca em causa é, de forma mais geral e radical, a duplicidade e a hipocrisia de um humanismo degenerado que preside ainda hoje, apesar de Sade, Freud e Marx, às ações dos indivíduos como aos destinos das nações. ( Michel Foucault dizia, numa recente entrevista: “O humanismo foi uma maneira de resolver em termos de moral, de valores, de reconciliação, problemas que não podiam ser resolvidos. Você conhece a palavra de Marx? A humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver. Eu acho que a coisa deve se pôr nos seguintes termos: a humanidade finge resolver problemas que ela não pode se colocar! Nossa tarefa atualmente consiste em nos libertar definitivamente do humanismo, e neste sentido nosso trabalho é um trabalho político”).

É neste sentido também, e isto está implícito, que a obra de Bellocchio pode ser qualificada de política: devemos medir bem, sob esta ótica, a ruptura decisiva que I pugni in tasca marca com as opções fundamentais do neo-realismo. Desta vez, é o homem inteiro, e não apenas o homem social, que está no centro do debate, e é o tema do discurso. Eis a razão pela qual não poderíamos seriamente sustentar que os termos excepcionais através dos quais Bellocchio define o meio que analisa ( epilepsia, matricídio, incesto) poderiam ser completamente outros. “ O homem normal, diz aproximadamente Edgar Poe, possui todas as loucuras, enquanto o louco só possui uma”. E não se constitui no mérito menor do microcosmo descrito no filme apresentar uma inquietante antologia de condutas onde mesmo a “normalidade”mais assegurada não pode deixar de reconhecer alguns de seus traços constitutivos: o narcisismo, a crueldade, a inconsciência só são hipertrofiados para serem melhor identificáveis.

O entrelaçamento de temas e de motivos conjugados em I pugni in tasca é tão rico que é difícil, ao tentar dar conta destes, não soçobrarmos em um fastidioso catálogo de significações: mais aproveitável seria sem dúvida a recensão sistemática das formas utilizadas para levar a termo a convergência dos temas e das imagens. Seria preciso mostrar como Bellocchio faz ressoar menos a inquietude dos tempos fortes ou das cenas espetaculares que das cenas mais “cotidianas”, onde confronta a solidão de Sandro à de uma criança triste ( e um tinteiro versado sobre um caderno de notas é suficiente para indicar o sentido do drama por vir;) como a inacreditável inventividade gestual que sabe obter dos atores enriquece as relações de Sandro, seus dois irmãos, sua irmã e sua mãe até apagar a idéia teórica subjacente;  como os transes do bel canto anunciam e preparam o espasmo final, onde a imobilidade terrível da morte sucede à simulação lírica; como, enfim, a idéia de sacrilégio e de profanação encontra sua formulação exata nas imagens “escandalosas”, desembaraçadas de toda provocação pueril ( o enterro da mãe, destruição dos objetos da família, etc).

Por ter sustentado o rigor de uma ideologia revolucionária por uma forma digna desta, Bellocchio não fez apenas obra de inovador: ele realizou o sonho de todo jovem cineasta, que é o de oferecer à sua geração o espelho onde esta pode ler sua condição. Mas ele não é profeta, nem terapeuta, e sabe que cada qual permanece solitário com seu mal cadente ( haut mal). Uma vez os demônios exorcizados, os outros filmes mostrarão talvez a possibilidade prática de uma libertação. Serão ainda filmes políticos.


Jean André Fieschi, Cahiers du cinéma, 179, junho de 1966

Tradução: Luiz Soares Júnior

terça-feira, 16 de junho de 2015

O caçador inspirado




São várias as relações que Otto Preminger entretém com seus personagens: eis o caso de alguém que desafia a invenção de um roteirista, e a maioria seria irrisória, fosse este o melhor. A questão não é em primeiro lugar a do moralista, mas também seria injusto dizê-la inspirada unicamente por pretextos à mise en scène; é antes a noção de personagem que nos esforçaremos de captar esta ocasião. Comparando entre si os diversos filmes de Preminger, apercebemo-nos menos de certos temas dramáticos que de certos tipos de situações apropriadas para estudar certas reações, a observar certos gestos: a virtude dramática da droga em O homem com o braço de ouro; assim como, em Angel face, da obsessão criminal ou, em Whirpool, do domínio hipnótico consiste em suscitar certas manifestações psicológicas. A independência que estabelecem os filmes de Preminger entre o elemento dramático ( a intriga, a narrativa) e o elemento psicológico ( os gestos, os movimentos, as reações) nos convidam a aprofundar a análise. Se o romancista, se o roteirista aplicado se empenha em mesclar uns aos outros estes elementos, e de apoiá-los uns sobre os outros, justificando por um elemento psicológico desenvolvimentos dramáticos que por sua vez vão propiciar o advento de outras notações psicológicas, tudo se passa aqui pelo contrário- como se Preminger desdenhasse estes jogos de construção e só observasse na intriga a ocasião para provocar gestos que serão aqueles sobre os quais nossa atenção vai se concentrar. Assim, falei há pouco em manifestações psicológicas, e não em psicologia: trata-se de instantâneos, não de estudar a evolução dos personagens. Daí este aspecto particular dos filmes de Preminger: ligações rápidas, modificações de espaço que demarcam muitas arestas no desenrolar da narrativa, a progressão finalmente substituída por uma sequência de cenas fechadas sobre si mesmas e dotadas de sua própria progressão interna, tensão, paroxismo, queda e repouso. Vejamos bem por aí como Preminger ultrapassa o naturalismo, de que possui, aliás, esta fria paixão da precisão, esta recusa em construir os personagens, este gosto em acumular as observações, como o faria um entomologista. Mas enfim, estes grandes insetos são decepcionantes, e eis que ele os enerva e espia seus sobressaltos. O distanciamento que parece impor não passa de uma liberdade que ele se permite de forma suplementar, uma simulação que deixa à presa a ilusão da liberdade: a lonjura da linha ao longo da qual ele capturou sua presa. Não há experiência nem observação objetiva neste domínio: nenhum plano, nenhuma cena de Preminger busca nos persuadir que ele conseguiu.

É sem dúvida devido à consciência aguda deste fato que Preminger busca imprimir a suas obras um equilíbrio, em certa medida inconcebível, entre as exigências contrárias do real e do artifício.
O que mais marca na visão deste homem é a sua inteligência. Por que razão permanece ambíguo? É que esta lucidez não pretende aplicar-se apenas ao exercício mais eficaz de sua arte: ela se impõe refletir sobre os próprios meios desta arte. Parece-me que o gesto criador procede ao mesmo tempo de uma intenção e da esperança que uma nova intenção apareça no gesto, à medida em quer ele se acaba: a imagem nascente no traço, e não apenas pelo traço de uma imagem inteiramente pré-concebida. É esta ultrapassagem do projeto pela criação que Preminger parece mais intensamente buscar na criação.A arte é mais múltipla que impura; o seu modo de ser é a ambigüidade, o mal-entendido- mas aqui a idéia do mal-entendido acompanha-se sem cessar pela noção de que a arte se exprime naturalmente através do mal-entendido-, como se a ferramenta se incorporasse à matéria que forja. É ocioso perguntarmo-nos se é mais questão de estratagema ou de sinceridade; pois se toda criação é engodo, este engodo muda de natureza desde o momento em que se assume e se põe como a regra essencial da criação. Então, o artista só ilude em aparência; é com as aparências que ele ilude para exprimir uma verdade poética e moral. Assim, a ambição de Preminger não me parece fundamentalmente diferente da de Rossellini, seu virtuosismo não sendo mais que uma rede com os fios mais cerrados, jogada sobre acasos concertantes. Mais que ao seu virtuosismo ou a seu gosto do jogo, sou sensível ao que, na sua obra, oculta-se de inquietude e vontade de provocar o invisível, de levar a produzir-se algum encontro fortuito entre a atenção e a desatenção.
Preminger conhece demasiado as fontes de sua arte para se poupar a baixeza do dizer. Ele, portanto, não vai ornar a imagem com uma ambigüidade que a imagem jamais reclamaria, já que esta lhe pertence de pleno e primeiro direito. É uma ambigüidade completamente outra prometida pela presença, distinta e simultânea, do ator e do personagem; a arte do metteur em scène consiste em sublinhar esta distância ( décalage) para levá-lo em seguida a se apagar em alguns instantes privilegiados. Uma cena não é suficiente para obter a inflexão de um olhar, para surpreender o esboço de um gesto retomado ou contrariado, pelo qual o ator ( ou o personagem?) vai se abandonar, se trair. Assim, muitas cenas ( e das mais excitantes) permanecem à margem da ação dramática- ou antes: desenham uma nova ação, mais intensa que a outra. Tudo é adequado nesta perseguição tenaz das manifestações mais frágeis que a câmera captura sobre o ator ausente de seu gesto, como se ultrapassado pela força que o move: sem dúvida Jean Simmons não sabia que interpretava em Angel face, e eu não admiraria tanto Whirlpool se não achasse que a sujeição hipnótica de Gene Tirney é também aquela que Preminger impõe a seus atores. Procedimento extremo, e atores mais nuançados demandam mais sutileza; nenhum hipnotismo para Jean Seberg, mas adivinhamos bem a forma como nosso homem a dirige, manifesta esta mesma intenção de conduzir o ator para além daquilo que tem consciência de exprimir.

Por muito tempo, o objeto desempenhou um papel nestes momentos em que o ator ultrapassava os contornos do personagem. Folha de papel amassado, telefone, disco. Preminger se empenhava em semear objetos sob os passos de seus personagens, com o fito de despertá-los com o choque, e na medida em que um impedimento da matéria corresponde ao abstrato de seus itinerários. Mas unicamente o ator importa, e desde alguns anos vemos este grande metteur en scène dissipar tudo aquilo que poderia tirar a atenção destes, só ensejando enfim exprimir a realidade menos premeditada pelos sortilégios da forma, e de exprimir unicamente pelo ator o real pelo artifício, a tensão pelo repouso, a duração pelos equilíbrios mais transitórios. Ele emprega tanto lucidez quanto retidão. E Cocteau me oferece a mais sagaz das conclusões: “Não é preciso confundir a inteligência astuciosa, pronta para enganar seu homem, e este órgão cuja sede não existe em lugar nenhum, e que nos ensina sem piedade sobre nossos limites. Ninguém pode transcendê-los. O esforço feito o denunciaria. E sublinharia ainda o frágil espaço em torno de nós. É a esta faculdade de nos mover neste espaço que o talento se prova”.

Philippe Demonsablon

Présence Du cinema,11. Fevereiro de 1962

Tradução: Luiz Soares Júnior

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O tigre de Argol



Se é estranho que no fim de sua carreira um artista conceba retomar uma obra de juventude, ao menos esperamos vê-lo lançar sobre esta um olhar enriquecido  pela longa experiência. Assim, à primeira vista, são reminiscências de temas inscritos e desenvolvidos em outros tempos que nos tocam neste Túmulo indiano, com uma precisão às vezes espantosa. Subterrâneos, uma multidão de figurantes mascarados de autômatos, danças lascivas, uma atriz com a máscara imóvel e rija, e cujas pálpebras entrefechadas acusam a fixidez do olhar; vocês reconheceram Metrópolis. Um oriente de fantasia, senão de pacotilha, o combate de um homem e de um tigre meio-homem: vocês devem ter reconhecido a terceira parte das Três luzes, como reconhecerão Ministry of fear ou Woman in the window nestes corredores de mármores luzidios e glaciais, e You only live once neste reflexo de um casal às bordas de um lago, cuja água subitamente é agitada. Mas o que há de espantoso se, solicitado por um roteiro velho de quarenta anos e pelo contrato com os estúdios alemães após um longo exílio, Fritz Lang tenha assim a ocasião de afirmar a continuidade de sua obra e de marcar, com estas referências, que ele jamais desejou nada negar?

Falaremos portanto de retorno às fontes? Se sob mais que uma relação seu último filme retoma contato com o período alemão, convenhamos que há muito tempo Lang nos acostumou a este tipo de “balanço” onde a unidade não se concebe sem a diversidade. Balanço presente até na construção deste filme sistematicamente composto ( e um tanto esticado em duas partes por necessidade de distribuição): dois combates entre homem e tigre, duas cenas de dança no templo, duas viagens aos subterrâneos, dois encontros com os leprosos. Mas balanço também entre duas tendências deste metteur en scène, senão contraditórias pelo menos contrárias e se exprimindo uma por intermédio da outra: uma tendência à profusão, à extravagância, ao delírio; outra à nudez do sistema, ao rigor. E estas duas tendências, longe de se excluir mutuamente, apoiam-se umas sobre as outras. Seria fácil ver que a ordem rigorosa de certos filmes Woman in the window, Beyond a reasonable doubt, se nos dispusermos a descrevê-las, repousam facilmente sobre o paradoxo. E que delírio a inteligência pode se vangloriar de abolir quando a própria inteligência emprega todos os recursos disponíveis a organizar o delírio? Semelhante sistema, com o que ele comporta evidentemente de recusa, não deixa às vezes de ser fortemente sedutor, e no entanto suas próprias recusas o distanciam do real, ou mesmo o impedem de aderir a este.

Estética e moralmente, toda a obra de Fritz Lang vai ser o testemunho da empresa desenfreada de um artista para criar um mundo outro, um mundo que tenha com este aqui a menor semelhança possível. O tigre de Echnapur? Antes o tigre de Argol, e este se morde a cauda. Por que, com efeito, a Índia senão por estes palácios fabulosos, estes faustos e estes charlatões, se não for por um expatriação onde tudo se torna possível? Mas então, por que no século 20 empreender uma imagem às Índias e nos restituir a imagem que dela tínhamos no século XVII, em espírito pelo menos? Não sou seguramente o único para o qual a Índia é qualquer coisa de muito real, que engloba por exemplo o que viram Renoir e Rossellini, e sem dúvida muitas coisas mais. O real, vocês vão me responder, não interessa Fritz Lang. Eu concedo, e também que um olhar obstinado sobre as coisas só se justifica assim pela ambição de atravessar as aparências. Assim, é sempre partindo das coisas que a ação pode se vangloriar de nos fazer ver outras: o resto não é nada mais que uma bela desordem de imagens. Ao fazer da Índia um pretexto, o metter em scène, encerrou-se nesta via da abstração que consiste em toda reconstrução do real.

Em revanche, abre-se a via da fantasia e da profusão. Aqui, ritos e cerimônias são inventados para serem descritos, da mesma forma que as bibliografias de Lovecraft ou os labirintos de Borges, assim como estes cenários, em seu sentido mais amplo, favorizam o desabrochar de um cinema mais devotado à presença corporal do ator do que a valorização de gestos singulares que nos proporcionavam Scarlet street ou Beyond a reasonable doubt. E sem dúvida podemos preferir menos este a este outro, e este outro menos a àquele, que sabe fazer aflorar sobre o rosto a alma oculta. A alma e a dança se excluem mutuamente- ou antes: o que é portanto a dança, e o que podemos dizer dos passos? O Túmulo indiano nos oferece o exemplo de um cinema em liberdade, mas de uma liberdade sem outro objeto senão o puro espetáculo,: puro, como se diz puro acaso ou pura perda- ou seja: para simplesmente constatar um fato, e não levá-lo a argumentar.

Philippe Demonsablon, Cahiers Du cinéma, 98, agosto de 1959

Tradução: Luiz Soares Júnior


quinta-feira, 19 de março de 2015

“Um juiz? Um investigador? Deus?”



No último plano de Retorno do filho pródigo, Siracusa,- uma das defensoras mais inspiradas da utopia de que Ellio Vitorino nos conta o nascimento, as contradições, e finalmente o fracasso em Mulheres de Messine- está nos estertores de sua vontade. Ela sai do quarto onde acabara de fazer uma análise desencorajadora da situação com Ventura- também ele um dos participantes mais obstinados da vila autônoma que alguns Operários e camponeses haviam construído nos dias seguintes à Segunda guerra mundial-, e, sem forças, senta-se no limiar de uma casa. Ela olha o mundo diante de si, no vazio da paisagem, toma a pose da Derellità de Sandro Boticelli e, enquanto uma lenta panorâmica reenquadra a parte baixa de seu corpo, Siracusa deixa, cansada, descair seu braço ao longo do corpo. A personagem parece se entregar ao abandono, mas num último gesto de revolta mantém o punho esquerdo fechado.
O filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet encerra-se com este último signo de resistência, centrado sobre esta obstinação do desespero. Eles não renunciam. No momento em que as guerras contra os povos continuam a se infiltrar, ou a se imiscuir- uma vez que as demonstrações de força que seus instigadores julgam necessárias não são suficientes para forçar o adversário a se entregar sem combate-, em um cinema que ameaça “de uma outra maneira” a potência cada vez mais esmagadora da indústria, uma última linha de resistência se traça. Eles estão entre os últimos a não ceder, a empreender uma última batalha com os meios irrisórios mas tão bem utilizados que ainda se mostram eficazes, a encadear filme sobre filme para lançar os contra-ataques do desencantamento, para contra-atacar golpe sobre golpe aos Francis Ford Coppola e aos fabricantes de Táxis da vida – em uma guerra sobre a qual a maioria aposta, sobretudo os agressores, que está ganha de antemão: O Retorno do filho pródigo, e depois Humilhados- um depois do outro, um no outro, retém os discursos e as peripécias desta batalha.

Em O Retorno, a coalizão é completa. Todos os invasores implicados no ataque. Na Itália de depois da Segunda guerra, não são apenas os defensores da propriedade, como Carlo, que detalha as leis do cadastro e explica que não há terra sem proprietário, mas também os ‘caçadores”, armados de fuzil e adornados com lenços vermelhos, que explicam amical e doutamente aos operários e aos camponeses que sua autogestão não tem futuro. Eles seguem a linha direta ( e o ‘comunista’ Elio Vitorini a compreendia certamente neste sentido) da política produtivista stalinista, onde a prioridade era reservada à produção e onde toda intervenção do povo deveria evitar constituir-se em obstáculo à prosperidade do mercado, portanto do progresso: “Porque hoje não há nada além de um único mundo na economia. E quem se isola perde o trem... Vocês podem continuar? Seus pulmões vão estourar se continuaram.” Fim da História? Fim de uma “luta de classes”  de que o “socialismo científico” teria, com o ‘fim do comunismo”, apagado a “consciência” ao abandonar às “religiões” a conduta e os frutos da revolta. Quando um dos heróis olha reto diante de si, não em direção ao fora de campo mas do lado da visão- do espectador-, o que ele vê e de quem é o objeto da visão? Ironicamente, o roteiro se pergunta: “Um juiz? Um investigador? Deus?”

Em O mundo diplomático, Jacques Rancière explica que o ‘romance’ de Elio Vittorini é percorrido por uma “tensão” que Straub e Huillet filmam, e que “poderia se resumir em dois nomes, Bertold Brecht e Friedrich Hölderlin”, o diretor do rigor dialético e o poeta que “esteve entre os primeiros a conceber esta revolução das formas do mundo sensível de que o materialismo marxista retomou a idéia à sua maneira”. A voz e os personagens se fundem à natureza. Eles seguem caminhos que não levam a lugar nenhum. No começo da segunda parte do Retorno, três planos filmam os dois protagonistas, Cataldo e Toma, que compartilham suas inquietudes, e, a cada vez, a câmera permanece, depois de sua saída do campo, fixada mais e mais longamente sobre um atalho cujo vazio é submergido pela abundância da floresta. As árvores e a verdura onde os “atores” de Operários e camponeses liam a carta de sua história explodiu. O campo apossou-se do campo; ele o recobriu para o levantar da cortina do último ato, a hora do julgamento e do desenlace.

O texto da conferência que deu Jean-Luc-Nancy na Escola nacional da paisagem, texto que acaba de publicar em No fundo das imagens , é de agora em diante uma referência inevitável para quem deseja falar da paisagem,em pintura como em cinema. Para além de todos os ‘desprezos’ do nacionalismo, do patriotismo , ou mesmo de toda ‘comunidade’, “ não se torna menos claro... que a nação ( le pays) e o povo remetem-se um ao outro. Talvez o povo seja a nação que fala, e talvez o rincão ( le pays) seja a língua, quando é deposta no domínio do fora de sentido”. E também, mais diante: “O camponês é aquele cuja ocupação é o rincão. Ele o ocupa e se ocupa, e é ocupado por ele: ou seja, ele o toma sobre si e é tomado por ele”. Aqui, é antes de tudo uma questão de vozes. Escandidas e próximas do recitativo, elas ressoam. Perdem-se em sua ressonância. Confundem-se com seu eco. Os “pagãos” falam a um deus que não lhes ouve. Quer se trate do cenário da floresta ou, ao final, do quarto, as vozes contam menos uma história que a acentuam, dando-lhe seu ritmo e peso. As palavras se infiltram e rebrotam entre os troncos e as folhas. Quando um movimento de câmera, às vezes, passa de um interlocutor para o outro ou quando a encenação passa do campo ao contracampo, nas soberbas falsas tintas de Renato Berta, é para se colocarem à“altura das vozes”.

A “humilhação”, para os heróis que Vitorini inventou e que os Straub filmam, consiste em ser enxotado de sua paisagem e de seu trabalho, de ser posto no desemprego porque seu rendimento é insuficiente. Eles são colocados na porta do Paraíso. Não sabem mais onde pôr o pé. O Retorno... retoma um tema recorrente do western  que é o fechamento, a divisão das terras, as barreiras que seqüestram a extensão à liberdade...é, por exemplo, o tema de Man whitout a star), de King Vidor. Como o Tales do Teeteto, os camponeses e os operários são tomados pela aêtheia, pela desterritorizalização, e tombam sob sua força. O Retorno... é o filme desta queda, deste abandono e deste sobressalto que assinalam os braços que descaem e o punho fechado. A música é de Edgar Varèse, esta Arcana cuja coda foi composta em 1927 e só foi acabada alguns anos antes de sua morte, trinta anos depois. O film se abre sempre sobre um outro fim. Ele não se satisfaz jamais com seu acabamento. Esta última resolução ecoa, em Jean-Marie Straub, ao curta-metragem realizado em 1972, em plena guerra do Viêt Nam, quando já decolavam os inquebrantáveis B52, sobre a Música de acompanhamento para uma cena de filme de Arnold Schönberg, e cujo sub-título era Perigo ameaçador, medo, catástrofe. Nos extremos do desastre resta no entanto, Friedrich Hölderlin ainda, o início do Patmos: “Muito próximo/ e difícil de captar, o deus!/ Mas no lugar do perigo cresce/ também aquilo que salvará”.



Louis Seguin, Quinzena literária, abril 2003. 

Tradução: Luiz Soares Júnior.


sábado, 17 de janeiro de 2015

A imagem, aparentemente...



Em Phenomena, Mrs. Bruckner cobriu todos os espelhos de sua casa para evitar que seu filho contemple sua deformidade. Em Profondo rosso, Suspiria e Trauma, por exemplo, os momentos de revelação são ligados sempre a uma imagem especular, como se apenas o reflexo autorizasse um acesso a uma verdade do mundo, de outra forma inacessível. É a mesma idéia que encontramos nos espelhos dos quadros de Delvaux, de quem alguns são visíveis em Síndrome de Stendhal ( Pygmallião e Trens da noite). A verdade, se existe, se situa sempre no reflexo, na imagem trucada, no desdobramento. A esquizofrenia que se instala em Ana Manni ( Asia Argento) é em primeiro lugar significada pelo plano de um espelho oval no qual se reflete uma cicatriz sobre seu rosto, signo exterior de um corte interior. Mais tarde, quando decide acordar à sua aparência a sua nova personalidade, vestindo uma peruca loira, Argento escolhe filmar a sequência através de um espelho. Espelho revelador, como no fim de William Wilson, onde o herói-narrador descobre o outro lado de sua personalidade- um duplo tirânico saído da infância- diante de um espelho.
Para Dario Argento, não há um além da representação, e o real só é perceptível através de suas produções artificiais. “O quadro não é uma janela aberta sobre o mundo, mas uma vitrine na qual o mundo se torna cenário”. Helena Markos, pura sucessão de simulacros, encarna bem este processo de imagens-implicantes: uma imagem oculta sempre uma outra. Ser bi-face, semelhante a estas cartas sem profundidade que Alice encontra no desvio de uma floresta, superfície contra superfície.
Em seus filmes, é preciso portanto levar muito a sério as aparências, pois são elas que abrem para as profundezas, que revelam a substância das coisas. Daí a importância de tudo o que remete ao ilusório, ao engano, à falsificação, ao travesti ou ao truque. A profundeza está sempre na superfície, assim como o aparentemente falso é verdadeiro. Isto marca uma passagem, uma diferença fundamental para com a narrativa policial clássica, para quem a solução antes se encontra naquilo que não foi visto, ou subtraído ao olhar do investigador. Nos filmes de Argento, o fora de campo da imagem conta infinitamente menos que seu fantasma.


Por um fio ( entre a obra-prima e o cromo)

À sua maneira, a obra de Argento constitui uma síntese entre uma certa modernidade ( aquela dos anos 60 na Itália, mas também da Nouvelle vague francesa) e o cinema de gênero. Cada um de seus filmes demonstra como a primeira pôde irrigar a segunda, no entanto permanecendo fiel à estrutura do giallo. Sua arte do desvio, sua ciência da bifurcação, sua capacidade de fazer nascer de um detalhe ou de uma simples ilusão de ótica um grande momento de cinema, testemunham da posição singular do realizador de Ópera na história do cinema italiano. Da modernidade, ele soube tirar uma audácia formal própria a fazer filmes, um campo de experimentação- plástico, figurativo, formal- permanente. Do cinema de gênero, que jamais abandonou, conservou um repertório de formas e de motivos populares, profundamente ancorados na cultura italiana. A extrema distensão da narrativa, a inadequação ótica e psicológica entre o mundo e seus personagens, o caráter intercambiável das intrigas ( em Síndrome de Stendhal, um outro filme começa ao cabo de uma hora) ou a potência angustiante da imagem ( em Argento, toda imagem suscita questão) são signos modernos, mas de uma modernidade jamais indiferente às coações de sedução e identificação próprias ao cinema de gênero. Esta foi sem dúvida uma das grandes lições que Argento reteve de Sergio Leone: “Leone me colocou os pés no chão. Leone não é um teórico; ele dizia: ‘Não, o público não gosta disso.’ Ele me ensinou a levar em conta o público. Somos narradores, não profetas”.
“É esta necessidade de comunicar que torna a arte comercial mais vital que a arte não comercial, e portanto potencialmente mais eficaz, para o melhor e para o pior”, escreve Panofsky. O estilo de Argento visa à implicação máxima de seu espectador, e este é um dos paradoxos sobre os quais sua obra se constrói: de um lado, uma vontade de colocar a imagem à distância, e do outro uma estratégia perdulária disposta a tudo para ganhar a adesão do espectador e produzir o que os barrocos chamavam de meravaglia. Daí uma dimensão  simultaneamente reflexiva e popular de sua obra que, ao mesmo tempo em que se interroga sobre o que a tornou possível, joga com o efeito brilhante, a exuberância, a complicação dos motivos, os choques cromáticos ou musicais ( heavy metal e ópera em Ópera), e os sentidos, cuja tarefa consiste em provocar a vertigem.

Dificilmente redutível a uma categoria, a obra de Argento escapa de fato a toda classificação: apesar de possuir uma espantosa coerência ( dois planos são suficiente para identificar um de seus filmes), testemunha uma constante heterogeneidade. Esteticamente, seus filmes se inspiram tanto nos grandes pintores maneiristas do século XVI quanto na fotonovela italiana dos anos 60, os fumetti Neri ( Diabolik, Kriminal e outros Killing). Em sua fantasia de esqueleto, a Mãe das Lágrimas de Inferno evoca por exemplo Satanik, justiceiro sádico que fez sua primeira aparição em 1966 ( antes de ser levado para as telas dois anos mais tarde por Piero Vivarelli), mas também a Grande Guilhotina que assombrava as pinturas medievais de Signorelli. Cineasta do collage, no qual o coro dos hebreus do Va pensiero de Verdi pode servir de tela sonora a uma sequência gore ( vejamos a interminável agonia de Gabriele Lavia em Inferno), Argento se tornou mestre na arte de fazer variar, ou de questionar, às vezes brutalmente, regimes estéticos que pensávamos consagrados. Como, por exemplo, legitimar este plano de Síndrome de Stendhal onde, depois da visita da sala Botticelli dos Office em Florença, em que aparece filmada como imagem de síntese a descida de uma pílula no esôfago de Asia Argento? Como compreender a coerência plástica que justifica o aspecto kitsch da máquina verneana ( de Jules Verne) do caçador de ratos em Fantasma da ópera ou da garganta de Carlotta, verdadeira inserção pornográfica, de que vai sair a ária do Romeo e Julieta de Gounod? Todo Argento está aí: “Lutas entre sons, equilíbrio perdido, ‘princípios’ revirados, rufo inesperado de tambores, grandes questões, aspirações sem fins visíveis, impulsões incoerentes em aparência, cadeias rompidas, ligações quebradas, retomadas em um único elo; contrastes e contradições, eis aí a nossa Harmonia”. Há nele este gosto do enxerto impuro, da experimentação, da mistura constante entre matérias nobres ( a ópera) e triviais ( a fotonovela, ou mesmo o pornô-soft), por meio da qual retoma a grande forma do cinema popular italiano.

Na sequência de abertura de Profondo rosso, Marc ( David Hennings) interrompe seus músicos e lhes transmite sua profissão de fé: “Está muito bem, lhes diz ele. Talvez até bom demais. É muito estudado, muito preciso, muito formal. Tem de ser mais arrebatado. Não esqueçam que este tipo de jazz nasceu nos bordéis”. Alguns minutos mais tarde, à beira de uma fonte da piazza em Turim, uma conversação se dá entre Marc e seu amigo Carlo, cujos pontos poderiam ser aqueles endereçados por Argento à indústria do cinema italiano: “Veja bem, Marc, só há a política que nos separa, pois ambos tocamos bem. Mas eu sou um proletário do piano, e  você é um burguês. Você toca para a arte e goza com isso. Eu para sobreviver, mas não é a mesma coisa”.
O contraste governa o imaginário de seus filmes: por estabelecem relações menos impensadas que impensáveis, porque elevam a antítese a seu zênite, porque visam o mundo a partir de um princípio de semelhança para consigo mesmo ( princípio este cuja troca, circulação e metamorfose não passam de avatares), os filmes de Argento poderiam reclamar esta “dialética explosiva” que Genette designou como a alavanca do pensamento barroco: “o mundo assim bisotado se torna ao mesmo tempo vertiginoso e manejável, já que o homem encontra em sua própria vertigem um princípio de coerência”.
Ao reafirmar sem cessar sua crença absoluta no poder de ilusão do cinema, a obra de Argento poderia iluminar este célebre aforismo de Bresson extraído de suas Notas sobre o cinematografo: “Quanto maior o sucesso, mais ele frisa o fracasso ( como uma obra-prima de pintura frisa o cromo)”. Em 1985, a direção artística do Teatro Sferisterio de Macerata propõe a Argento encenar o Rigoletto de Giuseppe Verdi. Mas o projeto não vai adiante, por conta de infidelidade ao libreto. Sua versão rock e macabra, que metamorfoseia o Duque de Mântua em um vampiro lívido e depressivo, é recusada. Se a ópera não quer Argento, ele fará a ópera vir até si. Será até mesmo o seu fantasma. Em 1987, por causa de Ópera, ele investe no Scala de Milão e encena o Macbeth de Verdi, depois doze anos mais tarde nos dá sua versão do Fantasma da ópera de Gaston Leroux. Mas ele tira do fantasma ( Julian Sands) a máscara que todos os seus precedentes intérpretes- de Lon Chaney a Paul Williams- usavam, e se serve da arquitetura da Ópera Garnier como de uma metáfora do mundo da arte: na superfície, a cena e as lojas douradas, cheios de notáveis pedófilos e cantoras obesas; em profundidade, um dédalo de galerias enlameadas, percorridas por batalhões de ratos; e no meio, uma jovem soprano dotada de uma voz cristalina, que vai provocar uma conflagração dos espaços. Pois esta é finalmente a única coisa que conta, a pureza da voz e da melodia: “a arte não está na intenção, mas na execução”. Argento, é claro, filma do ponto de vista das profundezas, da violência e da pulsão que Christine Daaé sente advir em si. Ela vai aprender logo que a beleza do canto emana menos de seu órgão vocal que de suas tripas. O fantasma encarna esta nobreza selvagem, instintiva mesmo, que tanta falta faz à arte civilizada, desmoronando sob o peso de tradições ultrapassadas e rígidas. Há nele uma espécie de elegâncias bárbara: majestoso com sua musa , depois um animal, quando fareja Carlota como um felino, bloco de obscenidade dissimulado sob as camadas de carne e de poeira. Agachado no fundo de seu antro e cercado de ratos, o fantasma toca. Mas aquilo que lhe proporciona a música que sai de seu órgão não tem nada a ver com o mesquinho gozo do dandy; é um sentimento vital, sua única chance de sobrevivência.

Parece que os filmes de Argento carregam em si um desafio lançado à atividade crítica: eles não a intimam a buscar uma verdade oculta nem a autopsiar um discurso, mas em trazer à luz a estrutura de um sistema original, cujo código trata-se de encontrar. A significância, e  não a “significação”- para retomar aqui a famosa distinção de Barthes-, vive no coração do cinema de Argento: “O que é a significância? É o sentido na medida em que este é produzido sensualmente”.
A percepção emotiva do espectador, sua capacidade de adesão ou mesmo de recusa, fazem com freqüência figuras de parasita para o crítico que prefere o método discursivo ao método indutivo. Ora, o cinema de Argento é um cinema do efeito, que privilegia a emoção ao propósito, o afeto à reflexão, a intuição à elucubração intelectual: todos os seus filmes, desde o Pássaro das plumas de cristal até o Sangue dos inocentes, encenam um conflito entre estas duas abordagens, e todos terminam com a vitória ( precária) dos sentidos sobre a razão, da percepção sobre a ação, da implicação física ou ótica sobre a distância analítica. Há aqueles que, a partir de provas, buscam sem sucesso encontrar a pista do assassino ( função contrapuntística clássica da polícia, sempre impotente), e  os outros, que ao se instalarem no coração dos fenômenos procuram uma empatia sensorial  com o mundo que os circunda, quer sejam estes óticos, sonoros ou plásticos.


Dario Argento, O mágico do medo, Jean-Baptiste Thoret

Tradução: Luiz Soares Júnior.