quinta-feira, 28 de maio de 2015

O tigre de Argol



Se é estranho que no fim de sua carreira um artista conceba retomar uma obra de juventude, ao menos esperamos vê-lo lançar sobre esta um olhar enriquecido  pela longa experiência. Assim, à primeira vista, são reminiscências de temas inscritos e desenvolvidos em outros tempos que nos tocam neste Túmulo indiano, com uma precisão às vezes espantosa. Subterrâneos, uma multidão de figurantes mascarados de autômatos, danças lascivas, uma atriz com a máscara imóvel e rija, e cujas pálpebras entrefechadas acusam a fixidez do olhar; vocês reconheceram Metrópolis. Um oriente de fantasia, senão de pacotilha, o combate de um homem e de um tigre meio-homem: vocês devem ter reconhecido a terceira parte das Três luzes, como reconhecerão Ministry of fear ou Woman in the window nestes corredores de mármores luzidios e glaciais, e You only live once neste reflexo de um casal às bordas de um lago, cuja água subitamente é agitada. Mas o que há de espantoso se, solicitado por um roteiro velho de quarenta anos e pelo contrato com os estúdios alemães após um longo exílio, Fritz Lang tenha assim a ocasião de afirmar a continuidade de sua obra e de marcar, com estas referências, que ele jamais desejou nada negar?

Falaremos portanto de retorno às fontes? Se sob mais que uma relação seu último filme retoma contato com o período alemão, convenhamos que há muito tempo Lang nos acostumou a este tipo de “balanço” onde a unidade não se concebe sem a diversidade. Balanço presente até na construção deste filme sistematicamente composto ( e um tanto esticado em duas partes por necessidade de distribuição): dois combates entre homem e tigre, duas cenas de dança no templo, duas viagens aos subterrâneos, dois encontros com os leprosos. Mas balanço também entre duas tendências deste metteur en scène, senão contraditórias pelo menos contrárias e se exprimindo uma por intermédio da outra: uma tendência à profusão, à extravagância, ao delírio; outra à nudez do sistema, ao rigor. E estas duas tendências, longe de se excluir mutuamente, apoiam-se umas sobre as outras. Seria fácil ver que a ordem rigorosa de certos filmes Woman in the window, Beyond a reasonable doubt, se nos dispusermos a descrevê-las, repousam facilmente sobre o paradoxo. E que delírio a inteligência pode se vangloriar de abolir quando a própria inteligência emprega todos os recursos disponíveis a organizar o delírio? Semelhante sistema, com o que ele comporta evidentemente de recusa, não deixa às vezes de ser fortemente sedutor, e no entanto suas próprias recusas o distanciam do real, ou mesmo o impedem de aderir a este.

Estética e moralmente, toda a obra de Fritz Lang vai ser o testemunho da empresa desenfreada de um artista para criar um mundo outro, um mundo que tenha com este aqui a menor semelhança possível. O tigre de Echnapur? Antes o tigre de Argol, e este se morde a cauda. Por que, com efeito, a Índia senão por estes palácios fabulosos, estes faustos e estes charlatões, se não for por um expatriação onde tudo se torna possível? Mas então, por que no século 20 empreender uma imagem às Índias e nos restituir a imagem que dela tínhamos no século XVII, em espírito pelo menos? Não sou seguramente o único para o qual a Índia é qualquer coisa de muito real, que engloba por exemplo o que viram Renoir e Rossellini, e sem dúvida muitas coisas mais. O real, vocês vão me responder, não interessa Fritz Lang. Eu concedo, e também que um olhar obstinado sobre as coisas só se justifica assim pela ambição de atravessar as aparências. Assim, é sempre partindo das coisas que a ação pode se vangloriar de nos fazer ver outras: o resto não é nada mais que uma bela desordem de imagens. Ao fazer da Índia um pretexto, o metter em scène, encerrou-se nesta via da abstração que consiste em toda reconstrução do real.

Em revanche, abre-se a via da fantasia e da profusão. Aqui, ritos e cerimônias são inventados para serem descritos, da mesma forma que as bibliografias de Lovecraft ou os labirintos de Borges, assim como estes cenários, em seu sentido mais amplo, favorizam o desabrochar de um cinema mais devotado à presença corporal do ator do que a valorização de gestos singulares que nos proporcionavam Scarlet street ou Beyond a reasonable doubt. E sem dúvida podemos preferir menos este a este outro, e este outro menos a àquele, que sabe fazer aflorar sobre o rosto a alma oculta. A alma e a dança se excluem mutuamente- ou antes: o que é portanto a dança, e o que podemos dizer dos passos? O Túmulo indiano nos oferece o exemplo de um cinema em liberdade, mas de uma liberdade sem outro objeto senão o puro espetáculo,: puro, como se diz puro acaso ou pura perda- ou seja: para simplesmente constatar um fato, e não levá-lo a argumentar.

Philippe Demonsablon, Cahiers Du cinéma, 98, agosto de 1959

Tradução: Luiz Soares Júnior