quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Fortini cani: Ali





Te enfurnes no aqui e agora, por meio dos quais o futuro mergulha no passado ( James Joyce).

Há um ano, alguém perguntava a Straub porque, ao fim de Einleitung, depois das duas cartas em que Schoenberg vitupera Kandisky por seu anti-semitismo, depois do texto de Brecht relacionando o nazismo à história da luta de classes e das relações de produção capitalistas, ele não havia mostrado- ao invés de bombardeios americanos no Vietnã-, aviões israelenses no Sud-Liban. Straub respondeu que havia pensado um momento, que depois tinha-se recusado a, que este seria o assunto de um outro filme. Muito simples e muito fácil, dizia ele, para terminar a coisa onde esta havia parado ( boucler la boucle), simples demais e fácil demais para perfazer uma demonstração, muito mecânica e confortável, “a dialética” das vítimas se transformando em carrascos.

Fortini/cani é este outro filme, a terceira parte, depois de Moisés e Aron e Einleitung, do “tríptico” judaico de Straub-Huillet. Mas também, e necessariamente, por ser a última parte do tríptico judaico, é aquele onde vem convergir e se implicar de outra forma todos os fios que tramavam os ensaios anteriores: o fascismo e o racismo- antes: os racismos-, as segregações de que se sustentam as sociedades civilizadas, os neo-facismos sob a cobertura democrática, mas também o livro e o ato de enunciação, a questão do lugar e da memória, o romance familiar, a diferença, a história...
A História, este último fetiche. Fala-se muito disto nos dias de hoje. Incríveis, a proliferação, a inflação, a supersaturação de discursos sobre a história. Não há revista nem magazine que não venha com seu “cinema e História”. Nenhum colóquio, seminário, de festival ou simpósio um pouco sério que não se inscreva em seu programa. Todo o mundo, espantosamente, está de acordo: sobretudo nada de História para nada, que a História sirva às lutas atuais, viva a memória popular, abaixo o rétro, reapropriemo-nos nosso passado, etc. E aqui vem se empenhar os pequenos mestres, os Bertolucci, os Cassenti é claro, mas amanhã cem outros, administradores dos bens dos mortos, dizia Michelet, pretendentes à herança, novos gestores: eles foram como nós, eles nos prefiguram, portanto nós os realizamos...virulência em preencher as brechas, em completar aquilo que é buraco, a recolher os fragmentos disjuntos, a recobrir os pontilhados, ilusão paranóica de que a verdade possa totalmente se dizer, que possamos proferir o verdadeiro sobre o verdadeiro. Raras vozes discordantes no concerto; Godard: “Nada de histórias!”; Straub: Não esqueçamos o esquecimento”. Que ganhamos por um lado na História, dizia Lacan, perdemo-lo no outro, apenas; como não sabemos aquilo que foi perdido, cremos haver ganho. Eis o quadro para os pequenos astutos. Os outros, os idiotas, os trouxas, Godard, Straub trabalham a partir desta pequena seca implicada no ganho, do oceano do esquecimento onde flutuam alguns retalhos de memória. O que diz o velho Kominternien em Número deux? “O Pc , ele só vem dali, mas também daquele ali...E isso, ele não dirá jamais... é por aqui a saída”.

Há, em Não-reconciliados, uma cena que ilustra a questão deste esquecimento na memória: Schrella, resistente anti-fascista exilada, entra na Alemanha; ele volta para seu antigo bairro, e não reconhece nada nestes terrenos baldios, estes novos imóveis. Ele pergunta a uma menina se uma família Schrella não habitava ali outro tempo. “Não, não os conheço...”Anulação, incineração, desaparição, passagem dos traços de passos ao nada de traço ( de pas au pas-de traces) ou ao pouco de traços. E o gesto do cineasta: marcar com um traço ou circundar de um contorno, um quadro, este pouco ou nenhum traço restante. Trabalho, portanto, de terceira mão. Os “cinemas-e-História” contentam-se com uma ilusão referencial: como se fossem, som e luz, efeitos de real.
Por que, nos filmes dos Straub, estes buracos, estas síncopes, estas ausências de narrativa, senão pelo fato de que eles são homogêneos a seu objeto: a história, a história que não é o passado. Eu quis construir Não-reconciliados como um corpo lacunar, declara ele, ou seja, segundo Littré, um corpo composto de cristais aglomerados, deixando entre si intervalos. E, bordando estes intervalos, como cristais, as inscrições petrificadas e medusinas de que falava Bonitzer em J.M.S e J.L.G. Nas imagens de Fortini Cani, não há nada além disso: inscrições lapidares, lugares de memória, farrapos de tempo na pedra, as paisagens, os monumentos, os ossuários. E cada plano, como é dito a propósito de Crônica de Anna madalena Bach, é ele mesmo uma pedra.

Ausência total de evocação histórica, de “tableau” de gênero, de índices ou insígnias de época. Mas no entanto nada de mortificante, nada da meditação sobre o esquecimento altaneiro e desencantado, crepuscular, de um Resnais em Hiroshima, Toda a memória do mundo, Noite e neblina, e mais ainda Providence. Aqui, nada possui lugar senão o lugar- a referência a Mallarmé não é casual, e voltarei a ela. E da mesma forma como Godard, transversalmente à questão do aqui e do ali ( ici et ailleurs) , desenvolvia uma interrogação sobre o tempo- tempo das cadeias, tempo do capital, tempo de uma imagem cinematográfica, tempo de tomar seu tempo-, Straub em Fortini Cani, a partir da questão de hoje e de outra época ( autrefois), que foi sempre seu tema ( o que tal ser ou tal viraram?) prossegue com uma pesquisa meticulosa do lugar. Ele barra os discursos da História proferidos por Fortini de inscrições condensadas, insistentes, de abreviações de tempo; placas comemorativas, monumentos aos mortos, nomes de ruas, percurso da Torá durante um ofício, traço oco de um triângulo maçônico arrancado em outro tempo pelos fascistas, com o A de anarquistas circundado por um círculo visível ainda hoje ( é sem dúvida neste plano que melhor podemos ler a tripla operação de que eu falava há pouco: traço, desaparição do traço, e o ato do cineasta como comemoração dos dois). Os filmes de Straub: um fluxo de palavras fixadas sobre as pedras ( metaforização no último plano de Lições de história: a água da fonte romana escorrendo interminavelmente de uma máscara de pedra). Nada o demarca melhor do que este enorme buraco no discurso marcado pela sequência dos Alpes Apouanes, onde a câmara não pára de fixar paisagens um pouco perturbadas por alguns ruídos de motores distantes ou por alguns gritos de crianças, não acaba nunca de fazer panorâmica sobre carreiras de mármore. Straub topógrafo, geógrafo, desenhista de mapas, agrimensor, técnico dos aluviões do terreno. Aquilo de que se trata é de fabricar filmes discretos e mortais, como estas “pequenas obras certas, de sílex ou de diamante”, de que Fortini fala no último plano.

II

Mas há este fato que é o livro, do livro de Fortini de onde vem o filme, e todos estes planos onde vemos Fortine ler, ou se reler. Então, advém as eternas questões colocadas aos filmes dos Straub: o que acrescentam aos textos pré-existentes, onde se sustentam todos? O que esta aporta ao cinema e a estes textos ( peças de teatro, cartas, fragmentos de jornais, óperas, romance, ensaio), ao filmá-los, fazê-los ler, integralmente ou em parte, recitar, declamar, jogar, cantar, sprechgesanger, ou cuspir, deglutir, expulsar, martelar, vomitar? Será que eles não são suficientes a si mesmos? Onde está o “próprio” do cinema aqui? E se for realmente do cinema, quem comanda, a imagem ou o som? Trata-se de fazer imagem, de ilustrar, de figurar o escrito, ou antes de comentar, de acompanhar por imagens? De representar, de transcrever, de adaptar, de transpor ou de trair?
         
Falsas questões, de que nem Straub nem Godard jamais quiseram saber, jamais, e cada vez menos se possível fosse. Falsas questões que eles deixam aos integristas do “específico”, a quem respondem: tudo o que se lê, se anota, se respira, se canta, se dança, se cita, se interpreta, se rádio ou se teledifunde, se grava, pode para nós fazer um filme, à condição de se inscrever ali. Onde, ali? Neste lugar que não é outro senão o espaço de concentração-dispersão de tudo o que se pode escrever, se anotar, se respirar, se cantar, se citar, etc. É por isto que, neles, tudo já foi escrito e tudo é ainda novo, nada é “original”, “inventado”, e no entanto nada preexiste ao ato de inscrição. O que suscita nos Straub este aparente paradoxo: que uma das artes mais elaboradas que existam possa ao mesmo tempo se expor inteiramente aos acasos.
Tudo é possível na filmagem, declara Straub. É neste sentido que seu “respeitar o real”, seu empenho em “mostrar” não é metafísico: o ‘dado a ver’ guarda sempre a pegada do gesto designador; índex, punho ou cepo, doando o ali. Há em seus filmes uma inalterabilidade mineral, mas também algo de precário, como uma transparência trêmula do ar, quase audível, durante os verões italianos.     

Qual o passo melhor realizado com Fortini cani? Ele faz entrar no filme, ao mesmo tempo que o livro ( I cani del Sinaï), o autor deste livro. Nem São João da Cruz, nem Bach, nem Anna Maddalena Bach, nem Corneille, nem Brecht, nem Schoenberg estavam presentes em persona nos outros filmes, e não apenas por razões de morte, aliás. Straub explica que, desta vez, o filme não teria nenhum sentido sem a presença de Franco Fortini, na iminência de ler ele mesmo os fragmentos de seu ensaio, ensaio que aliás vimos no primeiro plano do filme. Eis o que nos leva a compreender melhor a estratégia do cineasta em relação ao escrito onde se sustenta o filme, que permite que não nos perguntemos mais o que pode ser um filme tirado de um escrito preexistente, nem mesmo aquilo que obtém. Vemos pelo contrário que aqui é a própria máquina fílmica que tira o livro para ela- e o autor com ele-, que os faz vir a ela, que os absorve. De maneira que a questão de saber quem veio primeiro, ou quem o domina, do texto ou da imagem, e se uma ilustra o outro, ou o outro comenta uma, não possui mais grande sentido. Ao mesmo tempo, o texto de base e seu autor são inscritos no filme como partes, ao lado de outras partes, não antes nem depois ( as paisagens, a música, os extratos do jornal da R.A.I, as margens do Arno, a sinagoga de Florença, o diário de Fortini, etc). E mesmo inscritos em parte, já que aparecem em primeiro lugar o livro, depois a voz, depois as mãos de Fortini, e seu rosto apenas- é muito importante- depois da enorme síncope dos Alpes Apouanes.

Há aí alguma coisa muito nova concernindo ao cinema no que se refere à relação entre parte e todo, onde não apenas as partes não formam os elementos de uma totalidade a vir, nem são emanadas por uma totalidade pré-estabelecida, mas ainda onde nem é mais necessário anular a totalidade, já que o próprio todo funciona como parte, de ser contíguo e conexo às outras partes do filme. Relação de envelopamento recíproco e de torção que liquida as questões de anterioridade, de primado ou de  fundamento. O filme integra o que o sustenta, não existe nenhum elemento que não seja inscrito/inscrevente, como nestes nós borromeos onde, de três linhas, nenhuma se encontra recoberta pela outra sem ser ela mesma envelopada em relação à terceira. É preciso assinalar aqui que o filme não possui título ( Fortini/Cani é um título “no ar”, jamais inscrito enquanto tal no filme), e o que faz função de título é já o primeiro plano do filme ( aquele onde se vê a cobertura da capa de I cani di Sinaï). Há aí uma similitude intensa com a operação de escritura do Coups de dés, de que Mallarmé dizia que era a continuação de uma frase capital introduzida desde o título,o envelopamento recíproco do poema e do que este sustenta. Aliás, e é a isto que eu queria chegar, Straub/Huillet vão “rodar”, na primavera, em Paris, o poema de Mallarmé.

Mas há ainda outra coisa além desta introdução no filme do livro e do autor, e  é o fato de que Fortini não é simplesmente autor ou ator, mas leitor. Fortini, autor do Cães do Sinaï, é filmado na iminência de ler em voz alta extratos de seu livro. Straub insiste sobre o caráter ficcional do filme; ele tem horror a que lhe perguntem de explicar antes do filme quem é, na realidade, este senhor Fortini. Ele consente no máximo a dizer que se trata de um comunista, um ponto basta, e  veremos ao final do filme de que tipo de comunista se trata; ele quer que para o espectador não há nada no filme senão um ator, um personagem de ficção que vai ler, in ou off ( sobre ou sob imagens de que já falei) um livro escrito dez anos antes. Vemos muito bem o que uma reflexão moderna sobre a escritura, o texto podem tirar daí: o autor como produto de seu livro e não como fonte, o texto sendo parido ao final do percurso pelo seu próprio pai, a reversibilidade entre o escritor e o leitor. Há também o brechtianismo intransigente de Straub: a disjunção do personagem e do ator, a distância do ator ao que profere, a citação generalizada e não a expressão do texto. Mas o mais importante segundo penso não está mais ali: reside antes na introdução de uma potência de escuta, de uma colocação em jogo da pulsão invocativa.

“No cinema, dizia Godard por ocasião de Britsh sounds, vemos sempre pessoas que falam, jamais pessoas que escutam”. Muitas pessoas que falam em Straub, desde o início, que executam ou que se executam ( Gustav Leonhardt como ator interpretando o papel de Bach, mas interpretando realmente as obras deste diante da câmera, atores italianos, franceses, ítalo-ingleses simulando personagens de Corneille, mas realmente se confrontando com o texto francês). Personagens que não falam a ninguém em especial, convocando até o presente o espectador ao lugar instável de sua localização, dupla, de escuta e de olhar. Em Fortini/Cani, como vimos, há alguma coisa de outra: o autor entra no plano enquanto leitor, mas sobretudo auditor de um texto aparentemente único, mas por isto mesmo subitamente desdobrado. Pois o texto que ele lê e relê – e toda a operação consiste nisto- não é o texto que escreveu. Sempre a propósito do Coup de dés, Denis Roche notava que o mais importante no texto de Mallarmé não era o possível múltiplo, a pluralidade de planos de leitura ou a proliferação dos níveis, mas a ideia de um texto se retornando contra si mesmo na leitura. Cães do Sinaï ( que aliás não existem) adestrados contra si mesmos na leitura. Linha de fratura cindindo o texto único, intuição extraordinária do texto judaico enquanto este é reconduzido a seu limiar, a seu deserto, ao limite jamais transposto da “Terra prometida”, duas vezes começada, escrita, lida: “Os olhos em todo tempo não querem se fechar”, era o subtítulo do filme Othon. Mas a orelha, esta, sempre escancarada, não o pode em tempo nenhum. Se a pulsão de escuta, pulsão invocativa, pode se formular segundo Lacan como um “se fazer ouvir”, onde se encontram equívocamente mantidos em primeiro lugar a aceitação intelectiva corrente da fórmula, depois o “fazer” da atividade própria à pulsão, enfim a dimensão de apelo e de prece implicadas na palavra “invocante”-, podemos dizer de Fortini/Cani que é um filme onde o espectador vê alguém na iminência de se escutar falar. Mesma estratégia, segundo vias opostas, usada em Nous trois ( Six fois deux), onde o prisioneiro torturado se ouve escrever no silêncio de seu inexistente segredo, e em Fortini/Cani onde, minando o fluxo incessante da leitura em voz alta, escutamos o murmurar mudamente a questão de Fortini a si mesmo: “o que é que você entende por ‘ali’”?

Straub e Huillet insistem: contrariamente ao que se passava com seus outros filmes, eles não quiseram ensaios, seções de trabalho/leitura com Fortini antes do ato de filmagem. O importante é que Fortini se encontra confrontado, dez anos mais tarde, a um texto de arrebatamento e de polêmica lançada no combate por ele mesmo no dia seguinte da guerra de junho de 1967. O que se dá então a experimentar não é apenas “o prazer do texto”, ligado à escritura em voz alta que concerne Barthes ( referindo-se sem o dizer a Othon: prazer do grão da voz, voluptuosidade de seu som captado de muito perto, mas o efeito sobre o personagem escutando-se a si mesmo, do escutar-se falar: de espanto, de estupor, de não-reconhecimento, ou de adesão e de já ouvido ou o contrário, provocando então efeitos de discreta ênfase, de acentuação oratória, de visível auto-aprovação. Repetição na cena fictícia desta questão do trabalho do esquecimento na memória de que falava mais acima. Anamnese implacável de um romance familiar, melodrama como dizem muito seriamente Straub-Huillet, onde o filho se confronta com o pai, a todos os pais e os pares de seu pai. Filme de amor, como sempre com eles: tu não falas jamais de onde eu te escuto. Romance familiar, mas sem confinamento, sem estreiteza ( “a lei do sangue não é a boa”, diz um dos personagens de Não-reconciliados), porque sempre ao mesmo tempo romance histórico, conectando os heroísmos, as abjurações, covardias, e conversões individuais sobre a cena múltipla dos afrontamentos de classe, das histórias nacionais, das lutas de liberação dos povos, dos mecanismos de poder e de resistência, das discriminações raciais ou não raciais.

Sempre, se fosse preciso designar, o mesmo inimigo dos inimigos para os Straub: o humanitarismo de encomenda, como lá diz o outro, com que se vestem nossas exações ( a infame passividade ou a cumplicidade ocidental diante do anti-semitismo nazista ontem, e o mesmo humanitarismo que pretende nos dias de hoje proteger os Judeus contra as barbáries árabes. Como em Não-reconciliados, há em Fortini/Cani um grande tema, aquele que Kafka designava como “a depuração do conflito que opõe pai e filho e a possibilidade de discuti-lo”; depuração, conflito a se entender não como fantasma edipiano, mas como programa político.

Jean Narboni. Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, número 275, 1977

Tradução: Luiz Soares Júnior



Notas:

1 “Evidentemente, cada imagem só é realidade, e nada mais, “uma pedra”, é claro”. Sobre Crônica de Anna madalena Bach, Cahiers du cinéma, 193, página 58

2 No momento de Nicht Versohnt, alguns críticos saudaram em Straub um “novo Resnais”. A comparação foi deste então retomada, se bem que a cada vez com menos freqüência, em nome de um certo número de traços aparentemente comuns aos dois cineastas: intransigência moral, afinidade com as questões da memória e da perda, do fascismo e do lugar, ou mesmo a vocação a construir narrativas deslocadas. Ora, não há, em minha opinião, cinemas menos semelhantes que estes dois. A comparação merece ser retomada, no entanto, nem que seja para marcar de que tipo de cinema ( por oposição a outro), nós nos distanciamos decididamente mais e mais no Cahiers. Em priemiro lugar, no que se refere ao “deslocamento da narrativa”, Straub mesmo respondeu: “Nicht Versohnt é construído como um corpo lacunar, ou seja, alguma coisa que não tem nada a ver com um puzzle. Mais profundamente, encontramos no cinema de Resnais ( com exceção, talvez, do admirável Muriel), mais ou menos todos os elementos estruturantes, segundo Freud, da maquinaria obssessional: “O animismo, a magia, e os encantamentos, a super potência das ideias, as relações com a morte, as repetições involuntárias e o complexo de castração...( em A inquietante estranheza: Unheimlich). Daí a angústia que emana da obra, e que ele suscita ( levada ao seu mais alto nível em Providence). Em Straub, pelo contrário, e apesar da dureza, ou mesmo do horror dos temas abordados, há uma espécie de profunda alegria. É que o trabalho de esquecimento do luto não tem nada a ver com a paixão pelo cadáver: o primeiro é alegre ( gai), o segundo não.

3 Não acabaremos jamais de identificar, em Straub, em todos os níveis, os índices desta questão de lugares de memória: da gruta de Othon, onde os resistentes anti-fascistas dissimulavam suas armas ( verdadeira fresta de memória- trou à mémoire) à enquête em Lições de História do jovem rapaz mergulhando no coração de Roma para reconstituir a genealogia da City, sem esquecer a dupla inscrição que designa a última réplica de Nicht Versohnt ( cito de memória): “Ele não foi mortalmente ferido, mas eu não esquecerei jamais a impressão de estupor que pintou-se em seu rosto”.

4 In “Eros Energúmeno”, Ed. Du Seuil, col. Tel Quel, p.14

5 In Le plaisir du texte, Ed. Du Seuil, col. Tel Quel, p.105

6 É assim que Deleuze e Guattari recomendam-nos ler todo o Kafka in “Kafka: para uma literatura menor”, Ed. De Minuit, p. 31

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O sargento negro, por Jean Douchet



Ao permanecer fiel a si mesmo, John Ford torna-se novamente um cineasta de vanguarda. Semelhante permanência nos temas e na escritura conduziria qualquer outro ao academicismo. Mas a juventude de seu coração, e sobretudo uma fé profunda e intacta em uma tradição preservam este autor da secagem das fontes. Não há em sua obra um único ensaio de renovação. O sargento negro poderia ter sido filmado em 1938, ao mesmo tempo em que No tempo das diligências. Ele não aporta nada mais. Mas é tão belo quanto.
Reencontramos no filme os personagens caros ao autor: o coronel amuado, o jovem tenente intrépido e as mulheres cacarejantes e deliciosamente ridículas. O humor é rijo, tônico e “simpático” ( bonhomme). Nada aqui é complicado. Um sargento negro, logo após a Guerra da Secessão, vai para uma corte marcial. Acusam-no de dois assassinatos e do estupro de uma Branca. As testemunhas desfilam diante das barras do tribunal. Por uma sucessão de flashbacks, a verdade vem à luz. O sargento negro aparece-nos como um soldado de honra e um verdadeiro homem. Seu defensor, o jovem tenente, defende-o calorosamente. A verdade finalmente advirá perante todos, o assassino desmascarado.
A arte de John Ford é tradicionalista porque se funda sobre as virtudes dos simples. Virtudes, em nossos dias, esquecidas, ou mesmo desprezadas. É por isso que vários espectadores saíam deste filme rindo de suas ingenuidades, assim como de seus bons sentimentos. É bem evidente que Ford negligencia as sutilezas. Os refinamentos intelectuais o interessam menos que a nobreza do coração.
Seu estilo também não está ali para nos arrebatar. De um classicismo absoluto. Encontramos mesmo alguns arcaísmos, como este procedimento que consiste em obscurecer lentamente a sala do tribunal para anunciar um flashback. Tudo aqui está perfeitamente em seu lugar. As ações em primeiro plano respondem às que se desenrolam na profundidade de campo, como os planos americanos aos gerais. Um estilo sólido como rocha. Mas no interior sentimos o frêmito e a sensibilidade áspera do excelente artesão. E que admirável direção de atores! Um pouco pesada talvez, mas que sabe revelar com justeza admirável as reações exatas das pequenas gentes. Sabemos que Ford os conhece e ama, embora caçoe de seus defeitos.
E neste mundo de simplicidade onde este cineasta nos lança, não são os momentos melodramáticos os que nos transtornam mais. Mas antes certas imagens ingênuas ( naïves) , ou mesmo cromos. Elas adquirem subitamente no contexto uma força emocional extraordinária. Assim, certa imagem do sargento negro destacando-se orgulhosamente contra luz, enquanto vela por seus camaradas. É preciso redescobrir John Ford, cineasta ilustre e desconhecido.

Jean Douchet, Arts, número 794, do 2 ao 8 de novembro de 1960. Extraído de A arte de amar


Tradução: Luiz Soares Júnior